O varejo é das atividades econômicas e de negócios a que mais
reúne e contribui com diversas experiências ao consumidor. Nos canais de varejo, a
criação de valor é experimentada naquilo que chamamos de momento da verdade, ocasião
em que o cliente se conecta com possíveis soluções em formato de produtos e
serviços, através dos quais ele busca atender seus anseios e valores. A abordagem lean na
logística está completamente inserida nesse contexto, propondo dirigir os esforços e
recursos nessa direção da criação e realização desses valores,
colocando-os no tempo, modo, forma e locais certos para o cliente.
Neste artigo, descrevemos o caso de uma grande empresa do varejo com
atuação em todo o Brasil, no qual a organização alavancou seu crescimento e
lucratividade através da logística lean como forma de dar sustentabilidade à sua
política e estratégia de varejo. O negócio, de muita tradição, evoluiu ao
longo dos anos com sua estratégia centrada no cliente. De forma competente, ao antever as mudanças
de hábito do consumidor e as facilidades tecnológicas proporcionadas pelas inovações
do digital, a companhia inseriu nessa estratégia a adoção dos canais digitais integrados
às lojas físicas, de tal modo a constituir uma plataforma de omnichannel.
Omnichannel é a
expansão do conceito de multicanais. Vai além dos diversos canais com os quais o cliente pode
interagir com a empresa, físicos e digitais, porque incorpora uma experiência única em que o
consumidor pode completar aquilo que presencia na loja física – com a informação
disponível em dispositivos digitais –, saber que pode interagir por comunicação
à distância (ou resolver comprar depois com os dados ali armazenados) e ainda escolher onde quer
receber ou buscar fisicamente o seu produto sem limitações. A experiência prossegue depois
da venda e do recebimento, com informações e ofertas através de interações em
todos os canais com a mesma política e a mesma disposição de atendimento.
As palavras “todos” e “integração” são
fundamentais para entender as oportunidades e desafios que a estratégia adotada no caso apresentado
impõe ao sistema logístico. Omnis é de origem latina e significa todos ou todas. Channel, por sua vez, vem do
inglês, significando canais. Assim, a expressão nos conduz ao conceito de “todos os canais
reunidos”, não de forma paralela na operação, e sim de modo integrado. Todos
alinhados e conectados com foco na experiência única do cliente. No caso aqui descrito, a empresa
de varejo apresentava esse mesmo desafio no aprofundamento do conceito, devidamente sustentado por sua cadeia de
suprimentos e padrões logísticos. Isso assegurava essa experiência única até a
entrega física em prazos d+1, sem erros, sem avaria e com custo competitivo.
1) O desafio lean na logística
No caso da empresa de varejo, esse desafio se apresentava ainda maior em
função de sua amplitude de ação em todo o Brasil, da multiplicidade e variedade de
itens comercializados e de diversas opções de combinar e dividir entregas em endereços
distintos. Dessa forma, a expansão voltada ao excelente atendimento foi se construindo ao longo dos anos
em uma complexidade operacional que exigia um robusto método de abordagem aos problemas logísticos
antes de qualquer decisão de investimento.
Imagine a situação em que um cliente visualiza em seu aplicativo
digital um determinado produto. Ele descobre a partir da interação com o dispositivo que aquele
produto se encontra em uma determinada loja física, próxima da sua região. Ele resolve ir
até a loja, visualiza o produto, interage com o vendedor e decide comprar. Realiza a compra ali mesmo com
o vendedor, resolve tudo com o mesmo funcionário de acordo com a filosofia one face to customer e deseja receber
o produto em sua casa no prazo máximo de dois dias. Entretanto, nosso cliente reside em outra cidade e
comprou aquele modelo com aquela cor de produto, só disponível em algumas lojas por se tratar de
produção limitada em fim de temporada.
Começa aí toda uma operação de logística que, caso
não seja responsiva e eficiente, resultará em grande frustração daquela
experiência digital-física omnichannel. Na retaguarda, será necessário transferir o produto até uma
instalação interna e, em seguida, despachar a mercadoria com destino ao nosso cliente dentro do
prazo estabelecido. Tudo isso sem aumentar os custos.
Esse é o desafio do varejo omnichannel enfrentado pela empresa em
questão: situações semelhantes em número de milhares de operações
distintas que precisam estar integradas não só digitalmente, mas também através de
circuitos interligados que chamamos na logística lean de loops
de operação, dotados de fluxo contínuo sem
desperdícios.
2) Primeiro passo – as conexões físico-digitais
O primeiro passo da implantação do sistema lean de suporte à
estratégia omnichannel de varejo consistiu na identificação desses loops através do mapeamento do
fluxo de valor adaptado às situações logísticas.
Neste mapeamento (figuras 1A e 1B), as conexões do sistema físico com
os sistemas de informação digitais são priorizadas e analisadas quanto à capacidade
de fluir a informação correta no momento certo. Pontos em que havia sintomas de delay na informação (ou
disposição imprecisa ou incompleta dos dados, prejudicando o fluxo logístico) foram
investigados quanto às causas e direcionados para kaizens
que removeram tais obstáculos, acionando sempre que
necessário o auxílio de equipes de desenvolvimento digital e/ou logístico.
Figura 1A – Mapeamento do Fluxo de Valor em execução
Fonte:
Treinamento sobre Mapeamento do Fluxo de Valor promovido pelo Lean Institute
Brasil
Figura 1B –
Mapeamento do fluxo de valor com seus loops e interfaces.
Fonte:
Treinamento sobre Mapeamento do Fluxo de Valor promovido pelo Lean Institute
Brasil
No caso em questão, a empresa, graças ao mapeamento, identificou os
principais loops, que
foram objeto de um plano de ação para facilitar e agilizar as conexões
físico-digitais:
- Sistema de coleta nas lojas e transferências entre CDs.
- Sistema de inbound com chegada dos veículos nas docas de recebimento.
- Sistema de classificação das entradas e seu rápido
direcionamento para as locações no armazém.
- Sistema de armazenagem monitorado pelo WMS.
- Sistema de picking e consolidação dos pedidos.
- Sistema de outbound com as diversas rotas de destino.
Outro desafio era integrar as soluções propostas de todos os CDs do
Brasil, alinhando informações e conceitos entre os gestores das áreas de transporte,
gestão de CDs regionais, atendimento, pós-venda, frotistas e diversas áreas de apoio,
possibilitando uma visão única e crítica sobre o estado atual dos mapas e suas
conexões.
3) Construção do plano – tornando conexões ágeis e robustas
A visão compartilhada permitiu o estabelecimento de um plano de
transformação que conciliou tanto os aspectos gerais da organização, com sua
política centrada no cliente quanto às especificidades de cada loop operacional, quanto as
variáveis regionais, cujas soluções levaram em conta as causas específicas de cada
local. Exemplificando: em dada região atendida por dado CD, a conexão física-digital teria
que levar em conta um conjunto de transportadores individuais com limitações em seus dispositivos
de comunicação. Enquanto em outro cenário local, tratando-se de frota de operador
logístico, a disponibilidade de serviço de geolocalização já facilitava a
comunicação em tempo real. Todavia, em ambos os casos regionais, a rapidez nos processos de
alocação de cargas, agendamento e carregamento, ao lado da padronização de
procedimentos e tempos de execução, deveriam seguir o mesmo conceito de fluxo contínuo, sem
interrupções, base da filosofia da logística lean.
Para cobrir tanto o aspecto geral quanto as particularidades distintas pelo Brasil,
foram constituídos grupos por localidade com representantes de cada loop operacional, os quais elaboraram
a intervenção com base no pensamento lean guiado pela estratégia A3 (figura 2). Trata-se da
planificação do ciclo PDCA em um documento que esclarece e organiza os dados e fatos coletados.
Foram elaborados dezenas de A3, e todos foram alinhados entre si horizontalmente naquilo que mencionamos como
visão comum para facilitar as conexões entre os loops e entre os sistemas
físico e digital, mas também aprofundados verticalmente nas peculiaridades locais para realizar
soluções sustentáveis.
Figura 2 - Fonte: Shook,
John. Gerenciando para o Aprendizado, São Paulo: Lean Institute Brasil, 2008.
4) Fazendo as conexões – trabalho padronizado entre os fluxos
Diversas ações de melhorias foram realizadas pelos grupos seguindo a
abordagem lean. Algumas se notabilizaram por extrema simplicidade, porém com aguda criatividade. Outras
demandaram, além desses atributos, o auxílio dos profissionais de programação do
digital.
No primeiro caso, temos a ilustração dada pelo setor de
picking, que apresentava
baixa conexão com o loop de consolidação dos pedidos, levando muitas vezes a uma demora em
fechá-los, liberá-los para conferência e despachá-los. A doca ficava ocupada por mais
tempo, e indicadores desafiadores de entrega em 24 ou 48 horas eram prejudicados.
A simplicidade de reorganizar os corredores das categorias de produto, definindo o
trabalho padronizado entre as equipes em cada rota interna, permitiu sincronização das ondas de
picking e resultou na
diminuição das distâncias percorridas e menor lead time para cada corredor (figura
3).
Figura 3 – esquemas do antes e depois na organização das rotas de picking.
Fonte:
elaborado pelo autor
A reorganização das equipes em short-circuits com trabalho
padronizado permitiu instalar programação visual em quadros, montados em posições
estratégicas, os quais orientavam quanto aos horários de início e de
finalização das ondas. Assim, todos passaram a acompanhar o progresso das tarefas e alinhar com as
atividades da próxima etapa. Quadros de acompanhamento de desenho simples (com informações
registradas à caneta) poderão se tornar telas digitais com o passar do tempo (dashboards conectados com o sistema de
informação do WMS), na medida da aprendizagem e consolidação da
prática.
No segundo caso, o acompanhamento da entrega ao cliente com as
informações prestadas em tempo real pelos dispositivos digitais, registrando horários de
entrega e eventuais dificuldades encontradas pelo entregador, foram melhor sistematizadas através da
implantação de passos de trabalho padronizado do motorista. Um conjunto de opções de
resposta diante dos obstáculos foi sistematizado, indo desde intervenções em tempo real da
equipe de retaguarda até análises posteriores para encontrar causas dos endereços com falta
de referência ou com registro errado no sistema digital, que ainda persistiam respectivamente em 79% e 15%
dos insucessos (figura 4). De forma geral, as intervenções possibilitaram aumentar o índice
de sucesso das entregas na primeira tentativa (da ordem de 50 a 80%, dependendo da localidade).
Figura 4 –
gráfico de Pareto após análise dos 5 porquês dos insucessos na entrega
padronizada
Fonte: elaborado pelo autor
5) Obtendo o resultado, acompanhando e melhorando continuamente o sistema
Um dos benefícios da abordagem lean é consolidar resultados e buscar
novos desafios continuamente, tanto em sistemas manuais quanto em sistemas com tecnologia de última
geração. Essa busca é instrumentalizada através da instalação de
sistemas de acompanhamento com indicadores, desenhados para refletir a situação real da
operação no gemba – local real em que as coisas acontecem – através do qual a
logística lean toma decisões com base nas evidências. Tais evidências são
disponibilizadas por meio de dados e fatos acompanhados diariamente, consistindo na prática do
gerenciamento diário. Todas as operações em seus loops – rotinas de fluxos, como
já dissemos – foram dotadas de quadros de acompanhamento das metas diárias dos seus
processos ao longo do dia.
Assim, esses quadros de gestão visual, dos mais simples aos mais sofisticados,
com aquisição de dados de forma manual ou digital, foram instalados para permitir que todos os
envolvidos em cada processo reconhecessem o progresso de seu trabalho e, ao sinal de qualquer dificuldade em
cumprir a meta diária, pudessem solicitar auxílio de imediato.
Dessa forma, as mudanças diárias de programação foram
acompanhadas da agilidade operacional necessária no canal físico, na medida em que cada meta
diária passou a ser estabelecida entre as equipes de modo articulado. Essas mudanças são
típicas de um sistema de varejo omnichannel, cujas demandas são puxadas pela web em um dia, e o perfil das vendas muda
radicalmente em outro, passando a ser puxada por um comportamento sazonal e distinto das lojas físicas,
por exemplo. Cada quadro observado se articula com outro (figura 5). Cada loop de uma operação de
picking se articula com a
meta e o acompanhamento da expedição. Cada venda registrada no sistema digital se articula com
cada fluxo de picking no
CD (ou na transferência de loja). A tarefa de cada operador irá aparecer no quadro de
acompanhamento para a consolidação de todos os pedidos no dia seguinte ou, no mais tardar, em
d+2.
Figura 5 –
Alinhamento entre os quadros de gestão visual do planejado e realizado, com destaque para o
acompanhamento das metas horária e diária das equipes. Fonte: elaborado pelo autor
As mudanças e metas diárias são discutidas com as equipes em
diversos níveis, através de reuniões de stand-up
meeting com agenda padronizada de forma objetiva, encaminhando,
no início da jornada de trabalho, as ações que, na sequência, são comunicadas
e registradas nos quadros de gestão visual.
Dessa forma integrada entre os loops
da operação logística, a empresa varejista
implantou em seus sistemas físicos a mesma natureza de integração propiciada em seus meios
digitais do omnichannel.
Uma simbiose da logística lean com o lean digital propiciou os seguintes resultados de destaque:
- Aumento da performance de entregas nos prazos de d+1
(figura 6).
- Redução das reclamações de
entrega no site do
e-commerce (figura 6).
- Maior aproveitamento das docas com
redução dos tempos de espera.
- Menor lead
time nos loops,
sustentando as entregas de d+1.
- Maior envolvimento e engajamento dos operadores com
melhoria do ambiente.
- Liderança mais proativa com crescimento da
habilidade de enxergar obstáculos e oportunidades para criar valor ao cliente.
- Aumento das sugestões e
implantação de projetos de melhoria do business.
Figura 6 – Gráfico de
resultados antes e depois das ações de logística lean
Fonte: elaborado pelo
autor
6) Desafios atuais
Por fim, não há como deixar de chamar atenção para o
efetivo aumento no grau de agilidade, adaptabilidade e alinhamento que tais métodos da abordagem lean
propiciaram à empresa para enfrentar mais recentemente a crise da Covid-19. Sua rápida
adaptação à maior demanda do e-commerce
se valeu da estratégia digital ancorada em sua plataforma dos
canais da web, porém não teria alcançado o sucesso efetivo se não fosse a
conexão alinhada com os sistemas físicos através da logística lean.
A transferência rápida e integrada dos estoques de lojas aos CDs por
todo o país, suprindo as demandas redirecionadas para os canais de entrega direta aos clientes,
só foi possível com a agilidade com que a experiência única do cliente se incorporou
ao sistema físico através de conexões ágeis e por meio da implantação
da logística lean. Essa é a solução para o cliente do omnichannel através de fluxos
físico-digitais conectados de forma contínua, sem interrupções.
Por fim, com este caso prático aqui discutido à luz das
aplicações da abordagem lean na logística, concluímos ser a adoção de
tais práticas de forma articulada com as conexões digitais, um caminho seguro e eficiente para
colher excelentes resultados no alcance da excelência do varejo operando em ambientes de
ominichannel.