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Lean Turnaround: navegando nas mudanças de rumo

José Roberto Ferro
Lean Turnaround: navegando nas mudanças de rumo

Turnaround significa “virar em volta” em uma tradução literal do inglês. Atualmente, no mundo dos negócios, tem o significado de mudanças radicais no rumo de uma empresa. Os processos de turnaround alicerçados pela filosofia lean – lean turnaround –, orientados por uma liderança formada pelos princípios lean, pode aumentar as chances de sucesso.

No ambiente empresarial, o termo turnaround surgiu há algumas décadas com o significado inicial ligado a aspectos financeiros, ou seja, como superar resultados negativos no desempenho de uma empresa. Normalmente isso significava realizar esforços dramáticos de redução de custos e/ou o crescimento das receitas de modo a permitir a recuperação da rentabilidade financeira da empresa.

Os significados mais recentes tratam da mudança radical na orientação estratégica ou no modelo de negócio, não necessariamente ligado a um desempenho financeiro inadequado no momento. Tem se tratado muito mais da necessidade de estabelecer uma nova visão ou de um novo rumo para a empresa, para garantir a viabilidade do negócio no futuro.

Esse novo rumo pode significar a introdução de novos produtos muito diferentes dos produtos atuais, a busca por novos mercados totalmente diversos, inclusive podendo se criar novos mercados, novos modelos de negócios, novas formas de distribuição ou ainda simplesmente novas formas de gestão e de organização.

Então, podemos dizer hoje em dia que turnaround é um processo de transformação organizacional em direção a um novo rumo, a uma nova visão da empresa, um novo Norte.

 

Kaizen pode não ser suficiente

Estabelecer um processo de turnaround pode ser necessário, pois há um conjunto de mudanças fundamentais impactando o ambiente de negócios. Vamos apontar algumas delas.

Mudanças sociais acontecem sempre, em qualquer situação, em todos os momentos. São as novas mudanças demográficas na composição das populações, mudança nos valores da sociedade e dos desejos e gostos dos consumidores. 

As novas tecnologias estão expandindo de forma exponencial, em particular as tecnologias de informação, e oferecendo novas possibilidades de agregação de valor. 

Além disso, a competição atualmente surge de todos os lados. Mesmo uma empresa que está em setores tradicionais e considerados estáveis pode ter a concorrência de empresas que costumavam ser fornecedores ou não atuavam nesses mercados ou ainda são startups, com modelos de negócio totalmente distintos, tornando o ambiente competitivo ainda mais instável e incerto. Anteriormente ficava mais claro para as empresas quem eram os competidores que ofereciam produtos ou serviços semelhantes.

Ou seja, com essas mudanças, os processos de melhoria contínua (kaizen) podem não ser suficientes. Quando essas mudanças todas ocorrem ao mesmo tempo, a uma velocidade enorme, pode ser preciso pensar em algo muito mais profundo e radical, muito mais “fora da caixa”, para dar conta dessas necessidades.

O processo de planejamento e desdobramento da estratégia (hoshin kanri) deve contemplar os desafios e oportunidades estratégicas e estabelecer as reorientações e as novas iniciativas. Entretanto, pode não conseguir a articulação necessária, o alinhamento e o envolvimento necessário de todos.

Simplesmente melhorar os produtos e processos (kaizen) de uma empresa pode não bastar. Devemos considerar a necessidade de realizar um turnaround, uma mudança radical na visão e na direção da empresa.

 

Como o lean pode alicerçar o turnaround

A transformação lean em si possibilita um grande turnaround. Por ser uma mudança profunda na maneira de pensar e agir em toda a organização com foco na melhoria de processos (inclusive no desenvolvimento de produtos, na capacitação das pessoas, na mudança no estilo de liderança e no sistema de gestão, além de um novo pensamento), o lean faz com que o foco da empresa seja cada vez mais na agregação de valor sob a ótica do cliente final, buscando eliminar desperdícios e, com isso, liberando ou otimizando recursos.

O desenvolvimento das pessoas e das lideranças que estão implementando as novas práticas de gestão gera mudanças nos pressupostos culturais e dá maior poder e capacitação à linha de frente e às pessoas que estão agregando valor aos clientes, rompendo com a filosofia tradicional de comando e controle. Isso possibilita um contínuo crescimento e expansão do negócio através da melhor utilização dos recursos existentes.

Várias empresas conseguem resultados extraordinários através da transformação lean em todas as áreas do negócio. Um exemplo é o Instituto de Oncologia do Vale (IOV), uma clínica de oncologia que, através da utilização do lean em todos os seus processos, conseguiu mudar radicalmente o seu desempenho. Tem sido capaz de atender muito mais pacientes, melhorando substancialmente a qualidade do atendimento e do cuidado, aumentando a satisfação dos seus colaboradores e trazendo resultados para o negócio.

Nesse caso, o grande impulsionador do turnaround foi a mudança nos processos de gestão, na maneira de pensar e de fazer as coisas por parte da liderança e de todos os colaboradores, impactando o atendimento dos pacientes e os resultados do negócio.

Mesmo empresas lean mais maduras, onde a utilização dos princípios e ferramentas do LPPD (Desenvolvimento Lean de Produtos e Processos) é intensa e bem solidificada, pode ser necessário uma reorientação estratégica.

As práticas lean de desenvolvimento de produtos engajam a empresa toda, criam mecanismos de aprendizado rápido, através de constantes experimentações, e uma empresa atuante e sólida na resolução de problemas. Esse é o principal processo da empresa para criar os produtos para o futuro em um mundo em constante evolução e mudança.

No entanto, mesmo a empresa referência em lean, a Toyota, precisou repensar o seu rumo. Há muitos anos, ela tem sido líder no mercado automotivo em volume e rentabilidade, além de ser pioneira em inovações tecnológicas. Ela liderava o setor até recentemente com novas tecnologias, novos produtos, novos serviços. O desenvolvimento do seu sistema de produção (TPS) e de gestão (Toyota Way) impulsionaram a empresa até a liderança.

Contudo, ela está passando por uma transformação radical. Quatro tendências atuais no cenário automotivo, que estão acontecendo ao mesmo tempo, requerem mudanças profundas no rumo da empresa. Trata-se do CASE (Conectividade, Autonomia, Compartilhamento – do inglês, Sharing – e Eletrificação).

A maior conectividade dos veículos possibilita agregar mais valor aos clientes e também significa novas fontes de renda para as empresas.

Os veículos estão sendo pensados para funcionar independentemente de um motorista, liberando-o, portanto, para usar o seu tempo de outra forma e tornando a jornada muito mais suave e muito mais tranquila.

A ideia do compartilhamento permite que as pessoas cada vez menos se interessem em possuir um veículo; em vez disso, preferem usar um de acordo com as necessidades, mudando completamente a necessidade de propriedade.

Além disso, cada vez mais vem crescendo a tendência à eletrificação, na qual veículos elétricos vem substituindo os modelos tradicionais de combustão ou mesmo os híbridos.

Essas soluções não têm vindo das empresas tradicionais do setor. Outras empresas, como a Tesla, Microsoft, Apple, Google, Uber e inúmeras outras startups (Rivian, Nicola etc.), com modelos de negócio e visões de produto muito diferentes, têm revolucionado um setor que não havia passado por transformações radicais desde sua origem, há mais de cem anos.

A Tesla superou a Toyota na metade de 2020 em valor de mercado, mesmo tendo menos de 10% do volume de produção. Isso acontece porque ela já está orientada desde a sua origem a ser uma empresa mais agressiva em oferecer produtos com maior conectividade e também no respeito ao meio ambiente através dos veículos elétricos, mesmo que a sua qualidade percebida pelos clientes seja a pior no mercado norte-americano (J.D. Power, 2001)1.

A Toyota foi assim levada a repensar completamente a sua visão. De uma empresa originalmente de produção de veículos, está se tornando uma empresa provedora de soluções de mobilidade. Para isso, ela precisa desenvolver novas formas e modalidades de serviços e produtos.

Criou uma nova empresa, a Kinto Share, que oferece serviços de aluguel de carros no Brasil diretamente por algumas de suas concessionárias. Como acionista da Uber, tem o acesso às práticas, dados e conhecimento gerados.

Uma das mais importantes iniciativas foi a criação de uma cidade inteligente (Woven City) no Japão de 700.000 m2 com um ecossistema conectado na qual as várias tendências tecnológicas permitirão o aprendizado de pesquisadores envolvidos em várias soluções de robótica, inteligência artificial, várias modalidades de mobilidade e transporte, sustentável energeticamente, com o uso real de soluções e produtos, possibilitando assim múltiplas experimentações em situações muito próximas da realidade.

Um outro exemplo é a BRQ Digital Solutions. A empresa de tecnologia está procurando um turnaround para apoiar as empresas clientes que estão em busca da transformação digital.

Cada vez mais presente na agenda das grandes empresas do mundo todo, puxada com frequência por investidores e “boards” de administração, a transformação digital significa a adoção de novas práticas no uso de tecnologias e também uma mudança no modo pensar na empresa.

A empresa está buscando a sua transformação internamente, apoiada nos conceitos lean, para poder oferecer a transformação digital lean. Para atender adequadamente seus clientes, ela própria precisa fazer uma substancial mudança em sua visão estratégica.

Se a BRQ quiser se tornar protagonista na transformação digital, vai precisar passar por uma transformação fundamental nos seus processos, produtos, capacitação do seu pessoal e no estilo e papel de suas lideranças. Ou seja, ela precisa promover o lean turnaround e ajudar os seus clientes a fazer o mesmo. 

O Lean Turnaround é o processo de turnaround usando os princípios e as forças do lean. Alguns dos conceitos lean mais relevantes para um turnaround bem-sucedido são:

  • obsessão com a entrega de valor para os clientes;
  • maior capacidade de resolução dos problemas, inclusive dos clientes;
  • processos horizontais integrados com foco nas entregas para os clientes;
  • aprendizado e experimentação constantes; 
  • velocidade de aprendizado.

A maior capacidade de resolução de problemas é uma qualificação essencial porque as novas necessidades da sociedade vão requerer um esforço de buscar soluções para a resolução dos novos problemas dos clientes.

Ter muito mais capacidade e velocidade de aprendizado origina-se da capacidade de realizar experimentos rápidos e de aprender velozmente com os acertos e com os erros. 

O sistema de gestão pode precisar ser revisto. O hoshin kanri precisa ter ciclos de ajustes (C-A do ciclo PDCA) com maior frequência. E é possível que o Gerenciamento Diário tenha que ser ajustado com maior frequência, pois as expectativas, requisitos e compromissos podem mudar com muita velocidade. 

 

O papel da liderança no Lean Turnaround

O novo papel da liderança vai requerer uma capacidade de entender os novos cenários e identificar o novo rumo para onde a empresa deve se orientar. A tomada de decisões continuará ocorrendo sob condições de limitadas informações e que mudam com muita frequência. 

A liderança precisa buscar aumentar o entendimento das necessidades dos clientes e desenvolver produtos e processos que atendam essas necessidades de trás para frente, ou seja, repensar quais são as reais novas necessidades dos clientes, e não buscar apenas utilizar melhor os ativos e os conhecimentos existentes. 

A direção deve ter uma atitude gemba (ver a realidade diretamente com seus próprios olhos) e um senso de observação agudo e crítico capaz de enxergar os fatos e dados, entender as novas tendências e necessidades de clientes atuais e potenciais para desenvolver produtos e processos capazes de atender a essas novas necessidades.

Deve ter olhos ainda mais críticos e rigorosos para examinar a jornada do cliente, procurando reconhecer o que querem e esperam, o que efetivamente precisam e o que os desaponta, a fim de que possam acelerar a experimentação e desafiar que as novas soluções tenham mais sucesso em um ambiente onde a incerteza é cada vez maior. 

A liderança deve então articular a nova visão de forma simples, clara, motivadora e atraente do ponto de vista dos clientes e do negócio e explicitar a nova proposta de valor no longo prazo em um ambiente em que o longo prazo é cada vez mais curto. Ainda devem definir a sua tradução para um horizonte mais curto, o Norte Verdadeiro (1-2 anos) e o que isso implica para cada área, para cada processo, para cada colaborador. Para concluir, estabelecer um plano alinhado com a liderança, desdobrando-o para todos os processos e áreas relevantes.

A liderança precisa ter uma postura crítica de desafiar o status quo, de possuir uma insatisfação permanente, de ter uma mente provocadora e de criar uma cultura de superar desafios e obstáculos, além de colocar elevadas metas.

Ela deve procurar criar uma mentalidade de empresa pequena, independente do tamanho da organização, desapegada dos seus produtos e processos correntes, cuja capacidade de mudança de rumo tende a ser maior por não ser orientada para a utilização dos ativos existentes.

O sucesso em projetar e realizar experimentos controlados para ter resultados, aprender e escalar é vital. Definir o propósito específico, o escopo, os resultados esperados, os aprendizados e a escala com velocidades exponenciais passam a ser a chave do futuro. Realizando um experimento todos os dias, reinventando as coisas todos os dias, mas orientado para o novo rumo.

A liderança formada sob os princípios lean ajudará a empresa a realizar um turnaround com muito mais chances de sucesso ao delinear, alinhar e navegar em direção ao novo rumo.

 

Esse artigo foi baseado na minha apresentação no Webinar “Liderar com respeito: Como a liderança lean promove um turnaround nos negócios” promovido pelo Lean Institute Brasil em junho de 2020, incorporando exemplos e situações destacadas pelos apresentadores Carlos Frederico Pinto, do Instituto Oncológico do Vale (IOV), e Benjamin Quadros, da BRQ Digital Solutions, e coordenado por Robson Gouveia, do LIB.

NOTA

Power, J. D. (2001). Initial quality study. Management report, Agoura Hills, California.

Publicado em 25/08/2020

Autor

José Roberto Ferro
Fundador e Presidente do Conselho do Lean Institute Brasil

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