GERAL

Liderança Lean para Combate e Superação do Racismo Estrutural

Robson Gouveia e Tamiris Masetto Manzano

Recentemente a mídia tem mostrado alguns casos absurdos de racismo que vem mobilizando a sociedade na importante luta pela quebra de paradigmas raciais há muito tempo enraizados na cultura global. Os casos expostos nos últimos tempos não são novos e estão longe de serem exceções à regra. Esta não é a primeira vez que a sociedade se mobiliza pela causa negra, mas em todas as instâncias anteriores o resultado foi invariavelmente o mesmo: após alguns meses dos acontecimentos, a sociedade se esquece da luta, e tudo volta a ser como antes, como se nada tivesse acontecido. Ao refletir sobre esses fracassos passados, temos agora mais uma oportunidade para manter a chama deste debate acesa e tentar ocasionar no mundo a mudança de que tanto precisamos para assegurar diversidade e inclusão a todos. Desta vez, temos que transformar a comoção em ação. Já está mais do que na hora de fazer as coisas acontecerem. 

Vivemos em um país em que a maioria da população não é branca, com aproximadamente 55% declarados negros ou pardos. Ainda assim, o que enxergamos nas empresas, nas posições de liderança, é uma esmagadora maioria homogênea branca do sexo masculino. Por vezes, os líderes orgulhosamente exibem relatórios que mostram a diversidade em sua empresa, mas, ao visitar uma reunião de liderança, não se pode encontrar uma pessoa negra sequer. Os negros estão em posições de serviço, papel que a sociedade definiu ao negro, e não em posições de liderança. 

Na verdade, é tão incomum ver negros em posição de liderança nas empresas brasileiras que, nos raros casos em que acontece, tal fato é lidado com descrença e surpresa. Deives Rezende Filho, Fundador da Condurú Coaching Executivo, em sua participação no webinar “Liderança e Racismo Estrutural”, que aconteceu no dia 25 de junho, compartilhou conosco uma experiência que teve há alguns anos, quando foi convidado a trabalhar em um banco de grande porte. Ao entrar na sala do presidente pela primeira vez, Deives causou certo rebuliço; o presidente não conseguia entender o que Deives estava fazendo em sua sala e, sem convidá-lo a sentar, perguntou se ele estava lá para consertar o ar condicionado. Deives explicou que havia sido convidado para trabalhar no banco, e, após meros cinco minutos de conversa, o presidente, confuso, dispensou Deives.

A história de Deives é representativa da realidade em que vivemos, e a situação fica ainda mais crítica quando se trata de uma mulher negra; a situação da mulher, no geral, já é extremamente desfavorável nas empresas brasileiras, com pesquisas mostrando que apenas 1.6% dos gerentes no Brasil são mulheres. Roberta Anchieta, Superintendente Itaú Unibanco, tem muitas histórias interessantes sobre como é ser uma mulher negra em uma reunião de liderança e de como o fato de ela ser uma mulher negra é a primeira coisa que chega aos ouvidos dos participantes, antes mesmo de sua competência.

Enquanto mulher negra, Roberta possui algumas etapas extras para provar sua competência antes de ser equiparada aos outros participantes. Antes de mais nada, Roberta precisa provar que fala bem a língua portuguesa e a língua inglesa, o que causa surpresa nas pessoas por quebrar um estereótipo consolidado em suas mentes. Esse esforço inicial só para que Roberta chegue ao patamar de uma mulher branca às vistas da sociedade. Após isso, ela ainda enfrentará todo o desgaste e dificuldades que as mulheres enfrentam nas empresas e na sociedade, como o mansplaining e o manterrupting. Todo esse esforço inicial de Roberta faz com que ela chegue a um patamar naturalmente já ocupado por um homem branco heterossexual, tendo que se provar a todo tempo.

Tendo em vista o racismo estrutural encontrado na sociedade e nas empresas brasileiras, quebrar esses paradigmas para que os negros tenham mais oportunidades é uma responsabilidade de todos, trabalhando em conjunto para alcançar um objetivo comum. Tudo isso lembra muito o que são as bases da filosofia lean, que fomenta o trabalho em equipe e o respeito pelas pessoas. É verdade que todos os programas de diversidade e inclusão racial no mundo até aqui falharam; se tivessem obtido sucesso, não precisaríamos ter tantas pessoas nas ruas pedindo equidade e dizendo que vidas negras importam. Isso mostra que ninguém, no mundo todo, tem uma resposta certa de como fazer isso de forma efetiva. Isso não quer dizer, entretanto, que não tenhamos caminhos que tenham dado bons frutos e que possam ser percorridos na busca por um mundo mais diverso e inclusivo. Se quisermos realmente afetar mudança no mundo, precisamos focar em três frentes: conscientização, oportunidades e empoderamento.

Conscientização

O primeiro foco na luta contra o racismo está intimamente ligado à educação. Não somente a educação escolar (embora ela seja um dos principais meios para promover a mudança), mas de toda a população. A sociedade impõe rótulos sobre os negros que todos, consciente ou inconscientemente, acabam reproduzindo. Se, por exemplo, pedirmos às pessoas que pensem em um homem negro bem-sucedido, é muito provável que a primeira pessoa que venha a sua cabeça sejam jogadores de futebol. Isso dá a entender que essa é a única forma de ascensão social disponível a um homem negro, e esses rótulos precisam, urgentemente, ser quebrados para as gerações futuras.

A questão de como fazer isso às vezes não está tão clara e causa muito desconforto nas pessoas. Antes de mais nada, a escola possui um papel primordial na desconstrução dos estereótipos. O que se estuda nas escolas sobre os negros, em grande parte, começa e termina na escravidão. A impressão que fica é que o negro não existia antes dela e deixou de existir após. Pessoas educadas terão mais fundamentos para questionar: por que não há negros em minha sala de reunião? Por que não há negros em posições de liderança em minha empresa? Por que não recebemos candidatos negros para preencher as vagas que temos disponíveis?

É importante ter em mente que esta luta não é só dos negros, mas de todos. Os aliados não-negros são fundamentais, até mesmo por conta de termos tão poucos negros no poder. Na maioria das vezes, para tomar decisões importantes sobre o assunto, são somente brancos falando com brancos. Muitas vezes, as pessoas até têm boas intenções, mas, por medo de cometer gafes, não falam nada sobre o assunto. O racismo acabou se tornando um tabu. É aí que diferenciamos não-racistas de antirracistas. O não-racista não discrimina; o antirracista não tolera a discriminação ao seu redor, independentemente de quem venha. Precisamos de mais aliados não-negros antirracistas. Precisamos que eles falem sem medo; afinal, é muito melhor que o assunto seja falado com gafes do que ele nem seja comentado. No final das contas, trata-se de fazer o que é eticamente certo e praticar a diversidade e a inclusão.

Oportunidades

Trabalhar conscientização não é fácil; na verdade, é um trabalho de formiguinha que vem sendo realizado por gerações. Nos últimos anos, vimos grandes corporações começando a falar sobre diversidade e inclusão, e esse é um passo muito válido para desconstruir estereótipos, mas a verdade é que já estamos em um patamar em que precisamos praticar mais do que falar. Não podemos simplesmente fazer campanhas de conscientização no dia 20 de novembro e uma semana da diversidade durante o ano e esperar que isso resolverá. Chegou a hora da ação, de proporcionar oportunidades para a população negra, mas como fazer isso?

Primeiro, precisamos compreender o significado da expressão viés inconsciente. Enquanto pessoas, temos a tendência natural de validar e se aproximar de pessoas que se parecem muito conosco. Essa característica nossa, justamente por termos uma maioria branca em posições de poder, cria um ciclo vicioso que precisa ser quebrado.

Se você define como uma condição exigente para contratação que o candidato venha de uma universidade pública, muito provavelmente você terá poucos ou nenhum candidato negro. São nesses requisitos, como exigência de formação em universidade pública e inglês fluente, que muitas vezes os negros caem e não têm sequer condições de mostrar seu valor, pois não tiveram as oportunidades de estudo que os brancos tiveram. É necessário estender a seleção para incluir mais pessoas. Não adianta trazer colaboradores das faculdades “de ponta” usando a meritocracia como justificativa e incluir alguns negros apenas para parecer bonito. Neste caso, estamos falando de privilégios disfarçados como mérito.

Comece a transformação pelo mundo corporativo, cedendo oportunidades aos negros, não pela cor da pele, mas pela competência que eles possuem e não têm a oportunidade de mostrar. Os executivos precisam ir às universidades, mas não à USP. São nas faculdades tidas como de “segunda” e “terceira” linhas que você encontra pessoas geniais que não tiveram tantas oportunidades. Às vezes os estereótipos são tão repetidos para os negros que eles passam a acreditar: “não tenho espaço na Faria Lima; esse não é meu lugar”. Pois o lugar do negro é, sim, na Faria Lima; e em todos os lugares. Precisamos quebrar barreiras e fazer a conversa chegar aonde está o verdadeiro talento negro: nas periferias. Só assim podemos garantir que esse talento possa chegar a todos os lugares; se não por amor (que é o certo), faça pelo potencial financeiro. Quanto talento negro não estamos desperdiçando por conta do racismo?

 

Empoderamento

Muitas vezes, as palavras “diversidade” e “inclusão” são usadas intercambiavelmente, mas elas possuem uma diferença importante. A diversidade trata-se de “convidar a ir para o baile”, enquanto a inclusão, de “ensinar a dançar”. Nas empresas, as estatísticas de diversidade às vezes até são boas; entretanto, o maior problema não é a porcentagem de negros dentro da companhia, mas a representatividade que eles têm nas reuniões. Os negros estão todos na base. As empresas muitas vezes praticam a diversidade, mas não a inclusão. Hoje precisamos falar muito mais de inclusão do que de diversidade.

Para praticarmos a inclusão precisamos praticar o empoderamento: empoderar a criança, o adolescente e o adulto negro para que eles conheçam sua história e educar as pessoas brancas para que se tornem antirracistas. Por que não há negros nas salas de reuniões? Por que os negros não possuem representatividade nas empresas? Esse é um processo que deve englobar desde a escola até o ambiente de trabalho. O negro deve ser colocado como agente de transformação da mudança e, para isso, ele precisa ser o protagonista. Mas como promover o protagonismo negro?

Em primeiro lugar, escutando. Uma das bases do pilar lean de respeito pelas pessoas é a escuta ativa. Os executivos precisam escutar o profissional negro no dia a dia e criar um debate para que todos possam escutá-lo. Em segundo lugar, através da mentoria. Viviane Moreira, Gerente Sênior de Resiliência Corporativa do UnitedHealth Group, por exemplo, é participante de um programa de mentoria para média liderança, coordenadores e gerentes bem avaliados. Através de um recorte racial, esses colaboradores negros passaram a ser mentorados pelos superintendentes da instituição, independentemente de raça, com o objetivo de desenvolver esses profissionais em toda sua plenitude.

 

Os casos de racismo que ficaram em evidência na mídia nas últimas semanas são representativos de um problema social bem mais amplo, e esse racismo está muito presente nas empresas também, muitas vezes de forma estrutural. Não podemos desperdiçar mais uma vez esta oportunidade de discussão sem implementar ações concretas antirracistas. Esta é uma questão de ética e integridade, e este artigo é uma chamada à ação: brancos – falem contra o racismo sem medo e aprendam a escutar quem realmente tem algo a dizer, os negros. Negros – não abaixem a cabeça e não aceitem menos do que merecem. Através da conscientização, da oferta de oportunidades e do empoderamento podemos mudar a realidade ao nosso redor.


Este artigo foi inspirado nas falas de Deives Rezende Filho, Roberta Anchieta e Viviane Moreira, três grandes líderes brasileiros, durante o webinar “Liderança e racismo estrutural”, promovido pelo Lean Institute Brasil. Você pode assistir ao webinar aqui.

Publicado em 07/07/2020

Autores

Robson Gouveia
Diretor no Lean Institute Brasil.
Tamiris Masetto Manzano
Editora e tradutora no Lean Institute Brasil.

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