AGRONEGÓCIO

Terreno fértil para as sementes lean

Ricardo Itikawa e Bruno Battaglia
O Lean Institute Brasil está realizando experimentos lean pioneiros na agricultura. Os autores refletem sobre os desafios de transformar a cultura agrícola tradicional e as oportunidades que os recursos lean proporcionam.

Todos os dias, ao nascer do sol, os colaboradores rurais de todo o Brasil se agrupam em torno de um “capataz” para descobrir qual será o trabalho deles durante o dia. O trabalho desses “peões” vão desde levar o gado para vacinação até plantar sementes para a nova colheita, colocando uma cerca que permita manobrar uma máquina gigante.

A palavra “capataz” vem do latim caput (cabeça). Ele – sempre ele – é a pessoa responsável por organizar e controlar as atividades de uma fazenda e representar a voz e a autoridade do proprietário (que normalmente não vive na fazenda e, portanto, sente a necessidade de contratar alguém para cuidar dos negócios no dia a dia). Seu papel é distribuir o trabalho dando ordens e dizendo às pessoas o que fazer. Os colaboradores – a maioria com pouca instrução, muitas vezes totalmente analfabetos – seguem as instruções e fazem o que se espera deles. Para o capataz, a lealdade ao proprietário prevalece sobre a competência e a racionalidade: mesmo diante de pessoas que receberam treinamento formal, a abordagem da gestão ainda é antiga e carece de princípios científicos básicos.

É nesse ambiente que nós, do Lean Institute Brasil, estamos iniciando nossos primeiros experimentos lean. Estamos trazendo o pensamento lean para fazendas nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Ambas as áreas são consideradas centros de excelência para as culturas integradas de soja e milho e para bovinos. As propriedades familiares aqui variam em tamanho de 2.500 a 5.500 hectares de área cultivada e criam entre 4.000 e 5.000 cabeças de gado.

Neste artigo, compartilharemos o que aprendemos até agora sobre o pensamento lean aplicado à agricultura.

COMO INICIAR A TRANSFORMAÇÃO DE UM AGRONEGÓCIO

Em nossos primeiros projetos, não sabíamos por onde e nem como começar. Percebemos imediatamente que a tendência da indústria é culpar a natureza por todas as safras ruins – muita (ou muito pouca) chuva, muitas pragas e outros fatores. Naturalmente, a natureza desempenha um papel fundamental no desempenho de um negócio agrícola. No entanto, tinha que haver mais.

Quando perguntamos, por exemplo, sobre a disponibilidade de máquinas, não conseguimos obter nenhuma resposta. Quando analisamos a estrutura de custos e o desempenho financeiro, conseguimos reunir poucos dados confiáveis. Embora existam muitos indicadores disponíveis publicamente no setor, eles não costumavam ser rastreados nas fazendas com as quais nos engajamos. Além disso, sempre que discutíamos quais eram os problemas, os padrões básicos, as necessidades ou os possíveis alvos, as respostas que muitas vezes recebíamos eram “Não sabemos” ou “Não temos essa informação”.

Isso revela uma falta de parâmetros para acompanhar os indicadores de desempenho do negócio e mostra quão primitivo é o sistema de gestão no setor agrícola (o esforço concentrava-se nos avanços tecnológicos, em vez de melhorar os sistemas de gestão). O desempenho é avaliado principalmente em retrospecto, após o ciclo de produção ter sido concluído. Por exemplo, para avaliar a eficiência de uma cultura, o agronegócio normalmente conta os sacas produzidas. Da mesma forma, a determinação de sucesso na criação de gado ocorre após a venda dos animais. Há maneiras de monitorar a situação à medida que ela se desdobra – por exemplo, verificando o estado das plantas ou o quão rápido o gado está ganhando peso –, mas essas ações normalmente não são tomadas de maneira estruturada. Por isso, as lacunas podem ser resolvidas.

Infelizmente, a maioria dos empresários do setor acredita que não há nada que possa ser feito para controlar os custos internamente. Como os preços agrícolas são determinados principalmente pelo mercado internacional de commodities e variam de acordo com muitos fatores (principalmente fora do controle de agricultores individuais), a mentalidade predominante parece ser que “se a natureza ajudar, teremos sucesso”. Naturalmente, os subsídios do governo desempenham um papel na sustentação do negócio em momentos de baixa lucratividade.

Em uma situação na qual as coisas que acontecem em certo dia ou hora podem estar vagamente conectadas ao desempenho geral do negócio, nós nos propusemos a identificar a melhor abordagem. Devemos fazer um A3 para nos concentrar nos principais problemas? Isso soava como uma boa ideia, mas definir o tópico ou problema a ser resolvido foi um pesadelo. Até tentamos definir algum problema ou meta vaga, mas entender o pensamento científico e superar a falta de dados básicos mostrou-se um desafio para os participantes do exercício. A análise da causa raiz, a definição de metas etc. simplesmente pareciam estar além de suas capacidades. Até tentamos um exercício de MFV para identificar conexões sistêmicas e problemas no fluxo, mas também foi de pouca utilidade. Nós não desistimos.

IDENTIFICANDO E ENTENDENDO OS CICLOS DE PRODUÇÃO

Decidimos, então, entender o trabalho e os ciclos de produção mais profundamente, a fim de planejar as atividades em um nível macro e colocá-las em cascata para definir uma agenda semanal e uma rotina diária de gerenciamento como forma de melhorar o desempenho.

Por ciclo de produção, entendemos as principais etapas do processo produtivo. Na agricultura, por exemplo, eles seriam: preparação do solo, semeadura, controle de pragas e colheita. Para soja e milho, esse ciclo leva cerca de seis meses e ocorre no próprio solo.

 

 

O ciclo para o gado é muito diferente, geralmente em torno de dois anos, desde a inseminação e o nascimento da cria até a engorda e o transporte para os clientes.

 

 

Depois disso, decidimos nos concentrar no trabalho a ser feito em um período de duas semanas e no trabalho diário (de segunda a sábado). Tentamos permitir que as pessoas que fazem o trabalho de hoje entendam melhor quais são as atividades diárias e o que o futuro próximo trará.

Para fazer isso, nós os ajudamos a dividir o trabalho e alocamos as tarefas para cada indivíduo em cada dia, com base no estágio atual do ciclo de produção.

 

Vamos dar uma olhada nas atividades de gado, por exemplo. Em qualquer dia específico, as equipes serão divididas de acordo com as atividades requeridas.

Esse processo de planejamento foi feito de forma visual em um quadro onde a equipe começou a se reunir todos os dias antes do início do trabalho, normalmente entre 5 e 6 horas da manhã.

 

INICIANDO O GERENCIAMENTO DIÁRIO

A definição de atividades diárias permitiu uma maneira mais estruturada de estabelecer o trabalho a ser realizado, que agora é exibido de maneira visual e transparente para toda a equipe em um quadro diário. A princípio, cada colaborador seria capaz de identificar sua atividade (designada pelo supervisor) no quadro, que explica o trabalho a ser feito, destaca os desafios e assim por diante.

Para realmente empoderar as pessoas, sugerimos que a reunião aconteça com toda a equipe em pé com os membros revezando-se no quadro e lendo em voz alta a tarefa que lhes foi atribuída. Naturalmente, isso não foi fácil, pois muitos mostraram-se muito tímidos e relutantes em falar em público. Alguns deles tiveram dificuldade para ler – os níveis de alfabetização são baixos nas áreas rurais de Mato Grosso.

As dificuldades iniciais estavam relacionadas à falta de padrões básicos. As atividades eram geralmente muito vagamente definidas, muitas vezes sem metas quantitativas. Por exemplo, se o trabalho do dia fosse plantar as sementes, não havia clareza sobre quanto espaço de terra seria utilizado. Para definir alguns padrões e descrições básicas de trabalho, ajudamos a equipe a criar vídeos simples.

À medida que os primeiros encontros começaram a acontecer, surgiram os primeiros benefícios: os colaboradores começaram a se sentir mais empoderados e comprometidos; os líderes foram capazes de fazer ajustes durante o dia; atividades poderiam ser embaralhadas ao longo da semana para compensar a interferência das condições climáticas no trabalho diário. Trazendo objetividade para a definição do trabalho e clareza sobre quem faz o quê, o quadro de gerenciamento diário aumentou o trabalho em equipe e reduziu a dependência dos colaboradores quanto ao capataz/supervisor. O quadro agora está executando o programa e definindo o que precisa ser feito.

Foi difícil conseguir que eles usassem o quadro para destacar os “vermelhos” – instâncias em que os resultados esperados não foram alcançados –, pois eles não percebiam a necessidade de revelar e sinalizar problemas para corrigi-los.

 

Com o passar do tempo, as reuniões diárias evoluíram para incorporar máquinas (e não apenas atividades) – um recurso fundamental desse negócio –, e novos quadros visuais e até A3 foram criados. Um deles, por exemplo, focava no planejamento da utilização de máquinas.

O gerenciamento diário forneceu muitos benefícios adicionais aos agronegócios com os quais trabalhamos. Por exemplo, durante a colheita, identificar os resultados diários esperados e compará-los com os resultados reais possibilitou a criação de oportunidades para intervir em operações de maquinário, como colheita, descasque etc. Como o processo de colheita era terceirizado (pago por hectare), não havia incentivo para ser eficaz e melhorar o volume produzido por hectare – um indicador crucial em uma fazenda.

Também ajudamos a equipe na criação de uma matriz de habilidades, que é usada para identificar quem está qualificado para fazer o trabalho. Essa ferramenta é muito útil no caso de ajustes na distribuição do trabalho.

 

O PRÓXIMO PASSO: UMA OBEYA

À medida que as empresas progrediam em sua jornada lean, elas começaram a se concentrar em outros elementos do trabalho – máquinas, pessoas, matérias-primas etc. –, o que exigia uma maneira mais elaborada e completa de estabelecer e monitorar metas: uma Obeya.

As primeiras obeyas criadas apresentavam os seguintes elementos: uma definição do propósito (“Alimentar o mundo”), um cronograma de dois anos, atividades atuais da lavoura (do começo ao fim), um leiaute da terra dividida em lotes, planejamento e cronograma de utilização de máquinas e equipamentos, um cronograma para a fixação de estradas e cercas, a definição de padrões básicos de trabalho, uma matriz de habilidades de trabalho e os A3s desenvolvidos pelas equipes.

 

Ter essas informações prontamente disponíveis durante as reuniões diárias ajuda a esclarecer todas as conexões entre as diferentes partes do trabalho e facilita o ajuste quando as condições externas (como o clima) mudam. Criticamente, isso também ajudou a envolver ainda mais as pessoas. Com tantos trabalhos diferentes acontecendo em uma fazenda, ter tudo alinhado e mobilizar todos nos mesmos objetivos provou ser um mecanismo poderoso para ajudar as pessoas a entenderem que podem desempenhar um papel ativo para garantir o sucesso do negócio (em vez de apenas aceitar o que a Mãe Natureza decidir).

Os negócios começaram a medir os resultados durante os diferentes estágios de produção (tradicionalmente, o desempenho da fazenda só é conhecido depois que as colheitas ou o gado são vendidos).

À medida que as equipes continuam a progredir, esperamos que elas enxerguem e capturem resultados positivos em termos de redução de perdas durante o plantio e a colheita, melhor aproveitamento de máquinas e equipamentos, ganho de peso mais rápido para bovinos com menor custo, início das atividades no tempo certo e melhor controle durante o tempo adverso.

EM CONCLUSÃO

Nessa fase inicial, nos concentramos no gerenciamento diário devido ao seu potencial para melhorar o sistema de gestão, mudar comportamentos de liderança e gerar melhores resultados. No entanto, existem muitas outras lacunas que esperamos abordar à medida que nosso aprendizado continua – começando com a criação de um processo melhor para identificar problemas emergentes com mais facilidade.

Também planejamos ajudar as organizações a implementar um processo de tomada de decisão mais descentralizado que capacite os trabalhadores na fazenda. Por serem os envolvidos no trabalho diário, eles estão em melhor posição para tomar decisões importantes para a fazenda – que sementes plantar, quando vender gado ou definir a necessidade de fertilizante – do que o proprietário (que muitas vezes está sentado em um escritório a milhares de quilômetros), um fornecedor de matérias-primas ou uma cooperativa que presta apoio parcial à fazenda.

Os experimentos iniciais que fizemos na agricultura aqui no Brasil provam que o pensamento e a prática lean podem ser extremamente úteis para transformar a agricultura. De fato, acreditamos que o setor agrícola é um terreno extremamente fértil para a aplicação dos princípios lean. Estamos honrados por ter plantado as primeiras sementes.

Agradecimentos a Adroaldo Taguti, da Copasul (Cooperativa Agrícola Sul-Matogrossense), Navirai/MS, pela oportunidade de trabalhar com a Fazenda Santa Marta, de propriedade de Claudio Sabino, e com a Fazenda 3 Irmãos, de propriedade de Julio Jacintho. Agradecimentos também a Miguel Sastre por nos dar a chance de trabalhar em sua Fazenda São Miguel, em Terra Nova/MT. Agradecemos ainda a Egidio Tsuji, Tharles Franchesco, Pedro Lopes, Perivaldo Carvalho, Wagner Zampiva, Dario Freitas, Marcio Carneiro, Murilo Saraiva, Ronaldo Palma, João de Jesus, Luiz Augusto, Cassiano, Giovani e outros pela contribuição, esforço e entusiasmo plantando as sementes lean.

Publicado em 15/07/2019

Autores

Ricardo Itikawa
Head para Manufatura e Desenvolvimento de Produtos e Processos no Lean Institute Brasil
Bruno Battaglia
Head Lean para o Agronegócio no Lean Institute Brasil

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