MANUFATURA

Lidando com os parentes loucos do lean

James Womack

YOKOTEN DE WOMACK – O autor reflete sobre como o legado de Taylor e Ford ainda desafia o movimento lean e por que os críticos deveriam superar uma visão simplista do lean de uma mera padronização.

Toda família tem alguns membros que são excêntricos e problemáticos – como o famoso tio louco preso no sótão. Apesar de isso acarretar em divertidas conversas em eventos familiares – desde que esse pessoal não esteja! –, parentes loucos podem se tornar um problema real se suas palhaçadas se refletirem na família toda. No movimento lean, meus dois candidatos a parentes loucos são Frederick Taylor e Henry Ford, que continuam a nos causar problemas após 101 e 69 anos de seus falecimentos.

Frederick Taylor, mais famoso por “Princípios de Administração Científica”, publicado em 1911, fez uma coisa boa – ele focou em como as pessoas faziam seu trabalho. Isso era um contraste à prática das grandes empresas de sua época, nas quais os gerentes pagavam por produção para encorajar os colaboradores a trabalhar mais rapidamente, mas sem conhecimento ou interesse em como eles realmente faziam o trabalho. Taylor queria mudar isso ao observar cada trabalho de uma organização – normalmente em grandes empresas de manufatura, como a Bethlehem Steel – para descobrir quem fazia o trabalho de forma mais eficiente, o que Taylor chamava de “a melhor forma”. Ele, então, queria padronizar essa prática e levar todos a segui-la enquanto aumentava a meta de produção que daria direito a um bônus. Ele acreditava que todos poderiam ganhar o bônus ao seguir seu trabalho padrão e todos seriam beneficiados.

O que estava errado com a abordagem de Taylor? Tudo. Taylor estava convencido de que a maioria dos colaboradores odiava trabalhar e estavam, portanto, “fingindo” trabalhar duro conforme podiam. Era função da gestão fazê-los trabalhar mais duro, e isso necessitava de uma distinção entre quem faz o trabalho e os gerentes, que pensam em como garantir que eles o façam. Portanto a necessidade do gerente entender o trabalho ao observá-lo. Isso significa na prática que a pessoa que faz o trabalho da “melhor” forma teria efetivamente seu conhecimento capturado para uso de todos sem qualquer recompensa. E todos os outros seguiriam sem pensar e de mau humor as instruções do gerente-especialista com base na melhor forma do melhor colaborador. Uma grande fórmula para o descontentamento das massas.

Mas Taylor não parou aí. Ele visualizou o trabalho necessário para criar um produto completo como um conjunto de passos isolados discretos, não como um fluxo contínuo. Então não havia necessidade de alinhar e conectar todo o trabalho com todos trabalhando no mesmo ritmo (conhecido por nós, hoje, como tempo takt). Ele concluiu que leiautes de vila de processos eram bons se o processo fosse monitorado por “viajantes” precisos e programações de produção para cada passo (mais tarde automatizadas como MRP) e que a tarefa mais importante para os gerentes era usar totalmente os ativos em cada vila, tanto técnicos quanto humanos. Isso levou à superprodução crônica para manter todas as máquinas e colaboradores ocupados. Para aproveitar ao máximo algo ruim, Taylor também inventou a responsabilidade de absorção e custo padrão, que julgava os gerentes por terem ou não utilizado completamente a mão de obra e as máquinas e, então, tratava os estoques do processo, não importando quão desnecessários fossem, como ativos. E, como o Dr. Deming mostrou, o foco na produção sem referência à qualidade da produção era corrosivo para a qualidade e para a melhoria.

Já quanto à melhoria além da melhor prática atual, ela deveria ser feita por especialistas, que faziam observações sem consultar os colaboradores ou os gerentes da linha e, no caso de Taylor, por consultores externos. Na verdade, Taylor inventou a indústria moderna de consultoria sendo o primeiro consultor de gestão, além de ser o primeiro consultor de processo.

Ah, finalmente, Taylor foi um trapaceiro notório que adulterou seus resultados quanto aos ganhos de produtividade (veja os artigos em inglês “The Management Myth”, de Matthew Stewart, e “Not So Fast”, de Jill Lepore, publicados em 12 de outubro de 2009 no The New Yorker, para mais detalhes). Meu Deus. Um parente muito ruim.

Henry Ford discordava de Taylor. Ele observou que o trabalho duro do colaborador clássico de Taylor (Schmidt, o manuseador de ferro gusa) seria desnecessário se os ferros gusa fossem colocados no lugar certo desde o início. Se não houvesse estoque em processo entre as etapas da produção e se tudo, desde a etapa anterior, fosse entregue diretamente ao passo seguinte, não haveria nenhum gusa ou qualquer outra coisa para levantar. Trocar de ilhas de processo para células e fluxo contínuo para cada família de produtos era a solução, deixando de fora muitos passos que eram um desperdício completo. E, nos primeiros dias, até o complexo de Highland Park ser concluído em 1914, gerentes e colaboradores de linha da Ford perguntavam intensivamente sobre a melhor maneira de fazer cada tarefa no novo sistema de produção de fluxo de Ford, trabalhando de trás para frente a partir do próprio trabalho, e não observando muitos colaboradores para ver quem faz o trabalho da melhor maneira. Mas, conforme sua empresa crescia em tamanho, os gerentes começavam a simplesmente dizer aos colaboradores o que fazer e como melhorar seu trabalho com base na análise de engenheiros industriais. Os colaboradores deveriam manter a cabeça abaixada e continuar trabalhando – Taylor tinha entrado pela porta de trás.

Ford era uma daquelas pessoas que viviam além de seu tempo de outras formas também, pensando saber do que os clientes precisavam, especificamente um produto completamente padronizado sem opções oferecidas e sem qualquer alteração por anos. E ele amava sistemas políticos que poderiam fornecer a estabilidade necessária para fazer seu sistema funcionar sem problemas. Ele foi premiado com medalhas por aumentar a produtividade industrial por Hitler e Stalin. E ele era notoriamente antissemita e antilaboral e anti um monte de outros grupos também. Em suma, sua reputação teria sido melhor, o mundo teria sido um lugar melhor, e os pensadores lean teriam tido uma vida mais fácil se ele tivesse sido atropelado por um Modelo T em 1914 em vez de viver outros 33 anos para se tornar progressivamente mais excêntrico e destrutivo.

Hoje, sofremos com Taylor e Ford quando os críticos contam com reconhecimento de padrões que nos marcam como "Tayloristas" ou "Fordistas", sempre com foco na questão do projeto de trabalho e gestão. Eles veem uma dimensão de um pequeno pedaço do kit de ferramentas lean - padronizando trabalhos individuais - como o todo. Mas eles nunca perguntam sobre como a normalização pode funcionar quando o conteúdo do trabalho varia (pode) e eles nunca perguntam sobre o processo total de criação de valor e como o trabalho e sua gestão podem ser conectados de ponta a ponta (podem) para o benefício de todos, através da investigação sobre o trabalho compartilhado.

Essa crítica parece ser ouvida com mais frequência conforme o pensamento lean é aplicada ao trabalho profissional, onde "profissional", para muitos, significa a oportunidade de fazer seu trabalho de sua própria forma sem ninguém saber o que você está fazendo. Recentemente, encontrei um belo exemplo em uma organização governamental que regula medicamentos e dispositivos médicos críticos para a saúde humana. As centenas de médicos e doutores envolvidos na realização de determinações sobre a eficácia e a toxicidade trabalhavam em salas pequenas atrás de portas fechadas. A alta administração realmente tinha muito pouco conhecimento do que eles faziam, de como os muitos passos foram conectados, do porquê ter demorado tanto tempo e de muitos itens autorizados para uso após anos de análise terem produzido efeitos colaterais imprevistos.

Fui chamado a dar uma segunda opinião depois de os esforços para melhorar o trabalho profissional de consultores tradicionais de gestão terem levado ao desenvolvimento de procedimentos operacionais padronizados que não tinham uma real compreensão do trabalho ou KPIs para o desempenho de cada etapa, resultavam em queixas de “ups de velocidade” e não ocasionaram nenhuma melhoria nos resultados. Expliquei que os gerentes e os criadores de valor precisavam começar compreendendo de fato o trabalho e seus impedimentos através de diálogo intenso.

O trabalho profissional - o do engenheiro, do médico, do desenvolvedor de aplicativos, do gerente também - é particularmente importante para os pensadores lean porque, ao longo do tempo, escritório e trabalho profissional tornaram-se uma fração cada vez maior do trabalho total feito pela sociedade. E, no futuro, à medida que prossegue a automação, o trabalho braçal na fabricação e outros trabalhos manuais irão provavelmente seguir o mesmo caminho do trabalho agrícola para se tornar uma parte muito pequena da atividade econômica. Então, se não podemos melhorar o trabalho profissional, chegamos a um limite, talvez seja essa a razão pela qual economias mais desenvolvidas do mundo estão mostrando apenas ligeiros ganhos de produtividade nas últimas décadas, apesar de muitas novas tecnologias.

Como podemos lidar com esse problema? Em primeiro lugar, vamos garantir que não sejamos secretamente Tayloristas ou Fordistas. Em minhas visitas a empresas, às vezes ouço membros de nossa comunidade dizerem: "vou dizer a eles como fazer o trabalho e também vou pensar em como fazer o trabalho melhor". Bloqueie esse impulso. É desrespeitoso com as pessoas e leva a maus resultados.

Então, vamos ser mais claro com todos que encontramos sobre a natureza do lean. Precisamos explicar que sempre envolve intensa colaboração entre todos - gerentes de linha, criadores de valor da linha de frente (de colaboradores de montagem até cirurgiões), colaboradores de funções de apoio - para compreender profundamente o trabalho e, em seguida, repensar e alinhar fluxos complexos de trabalho que envolvam muitas pessoas com diferentes habilidades. O objetivo deve ser o de produzir um resultado melhor para o cliente, uma melhor experiência de trabalho para os colaboradores e um melhor desempenho para a organização, tudo através da remoção de desperdícios. Temos de ajudar as organizações a alcançar esses três objetivos ou não teremos feito nosso trabalho mais importante como pensadores lean.

O movimento lean, em mais de 100 anos, passou por um longo caminho além de nossos parentes americanos loucos, Taylor e Ford, indo para o Japão e voltando e adaptando os princípios lean para praticamente todos os tipos de atividade de criação de valor em todo o mundo. Então vamos convidar nossos críticos para vir junto com a gente, para além do simples reconhecimento de padrões e de respostas impensadas à própria noção de trabalho padronizado, para um nível mais elevado de compreensão sobre a natureza do trabalho humano e como fazê-lo melhor.

Publicado em 17/10/2016

Autor

James Womack
Fundador e consultor sênior do Lean Enterprise Institute.

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