- Introdução
O aspecto evolutivo na prática da gestão dos negócios é verificado historicamente através da evolução de conceitos, frente aos desafios empíricos que se apresentam aos gestores dos mais diferentes negócios. Um caso exemplar deste fato é o conceito de Supply Chain ou Cadeias de Suprimentos. Nos últimos 30 anos as cadeias de suprimentos foram inicialmente estudadas e gerenciadas como conjuntos de relacionamentos usando o conceito de contratos bilaterais negociados a cada par, até alcançarem a necessidade de serem gerenciadas como sistemas em rede adaptativos em que certos relacionamentos extrapolam os contratos. Naturalmente esta evolução acabou encontrando um outro conceito que apresenta correlações com o aspecto de gestão dos relacionamentos: o conceito de ecossistema.
Os ecossistemas surgiram na gestão das empresas como uma metáfora biológica em que as organizações se relacionavam em processos de competição e colaboração alcançando equilíbrio no mercado, assim como se percebe com os seres vivos na Natureza. Atualmente ecossistemas são posicionados como estruturas de governança que organizam relacionamentos entre empresas participantes de um propósito comum, ou que compartilham uma plataforma ou interesses comuns.
O elemento relacionamento, comum aos conceitos de Cadeias de Suprimentos e Ecossistema, tem gerado confusão na prática da gestão, provocando uma baixa distinção entre eles e, como consequência, gerando perda de oportunidade na prática de gestão em explorar diferenciais em seu modelo de negócio, como por exemplo as cadeias dos serviços de transporte e as cadeias promotoras de eventos se beneficiarem de relacionamentos colaborativos mais aprofundados em seus negócios, evoluindo de stakeholders para colaboradores, ou ainda, a cadeia dos chips microeletrônicos interagirem com as diversas cadeias de produtos na construção de uma rede de abastecimento sem distúrbios.
A prática da gestão Lean, por sua vez, reconhecida por sua efetiva aplicação com base em fatos e dados, vem identificando através de suas ferramentas de gestão (A3, Hoshin Kanri, Gerenciamento Diário, VSM etc.), a transformação do ambiente de negócios em um complexo de relações que exigem novas estruturas de governança. Assim, desde os exemplos da Toyota com a construção de Cadeias de Suprimentos edificadas sobre relacionamentos colaborativos, os conhecidos Keiretsu, tornou-se natural que a prática Lean identificasse um outro conjunto de relacionamentos, com outro grau e que passou a incorporar nas ações de governança para suportar os relacionamentos do Supply Chain. Assim, tornou-se necessária uma distinção conceitual que norteie essas práticas de maneira mais clara, encontrando no conceito de ecossistema esse fundamento e permitindo formular o conceito Lean de Ecossistema da Cadeia de Suprimento (Supply Chain Ecosystem).
- Ecossistema e Cadeias de Suprimentos – relações e distinções
O papel dos conceitos, mal compreendido como teoria para encher páginas de livros, é efetivamente trazer subsídios para novas estruturas de governança que precisam tratar novos elementos da realidade. Recentemente, o estudo dos ecossistemas busca distinguir sua contribuição de outras formas de governança, incluindo as cadeias de suprimentos. Entretanto isso tem gerado uma posição equivocada de retratar as cadeias de suprimento de maneira reducionista e simplista. Posição muito distante do que normalmente se realiza com o Lean Supply Chain
As cadeias de suprimentos foram descritas no passado como uma série de etapas que transformam matérias-primas em mercadorias. Com o tempo, como essas etapas foram cada vez mais executadas por vários fornecedores, a governança das cadeias de suprimentos ganhou importância estratégica. Já no final do século passado o fenômeno da concorrência capitalista foi descrito como sendo na verdade uma concorrência entre cadeias de suprimento e não entre firmas como postulado na economia Neoclássica. De fato, a governança dos relacionamentos inter-firmas nas cadeias de suprimentos se beneficiou do exemplo Lean da Toyota cuja prática de gestão e colaboração com fornecedores muitas vezes extracontratuais, mas compondo uma estrutura explícita de governança, influenciaram efetivamente a compreensão moderna das relações na cadeia de suprimentos.
Estudos sobre os custos de transação comprovaram como a decisão de fazer ou comprar com base somente em valores explícitos em contratos, põe em risco os fluxos financeiros diante de comportamentos oportunistas ou relações de dependência de recursos. Por sua vez, a Teoria da Agência prescreve a necessidade de estruturas de governança para monitorar e alinhar os diversos agentes de uma cadeia e suas assimetrias de informação e diversidade de interesses.
A difusão da gestão Lean em cadeias de suprimentos – Lean Supply Chain – contribuiu para a descrição de cadeias de suprimentos como redes adaptativas complexas onde, por exemplo, a escolha do material de um produto é influenciada por demandas socioambientais de comunidades regionais. As práticas de Lean Supply Chain somaram-se às mudanças do mundo dos negócios, indicando na prática a necessidade de mudar a gestão das cadeias de suprimentos de uma lógica de controle unilateral sobre outras empresas, para uma lógica de colaboração e autonomia supervisionada que abrange diferentes agentes. Essa mudança ocorreu porque a complexidade e o dinamismo nas redes de suprimentos exigem abandonar o monopólio do controle unilateral sobre o restante da cadeia. Ainda que tenhamos exemplos em curso do conceito tradicional, é uma questão de tempo o seu anacronismo diante das mudanças intensas que o ambiente de negócios tem passado.
Embora o conceito de ecossistema também contemple essa perspectiva moderna da cadeia de suprimentos, como sistema adaptativo complexo, no qual gerenciar os diversos relacionamentos entre empresas de vários setores é central para modelar a estratégia do negócio, ecossistemas tem a vantagem de permitir olhar para além da atual posição de interdependência na cadeia. Estendendo a análise para o entorno da operação das empresas no mercado, em que os fluxos de suprimento e distribuição ocorrem, o conceito de ecossistema permite alcançar novas relações existentes no ambiente de negócios, ainda que ocultas para a governança, e, por outro lado, também descobrir outras relações em potencial para entender como projetar melhor desempenho para cooperar e competir.
Figura 1 – representação do conceito básico da cadeia de suprimentos
Figura 2 – representação do conceito de Ecossistema da Cadeia de Suprimentos: oportunidade de revelar novas relações gerenciáveis no modelo de negócio.
A figura 1 apresenta a imagem tradicional e básica para representar o conceito da cadeia de suprimentos, mesmo quando nos referimos à gestão Lean de relacionamentos, pois nossa preocupação com o gerenciamento acaba se posicionando sobre os fluxos de materiais e informações mais frequentes ao longo do tempo. Na figura 2 visualizamos esta cadeia imersa em um conjunto disperso de organizações dos mais diferentes tipos - incluindo outros setores econômicos e sociais – que ilustra, finalmente, o conceito de Ecossistema da Cadeia de Suprimentos aqui proposto para a governança estratégica do Supply Chain. Imagine o leitor, que as outras organizações flutuantes no entorno da nossa cadeia de suprimentos na figura 2, também estabelecem relações com o nosso negócio, porém em menor frequência e de uma natureza ainda a ser evidenciada, pois elas não são analisadas e tampouco objeto de compreensão formal por parte da Gestão. Isso significa que se perguntarmos ao C-Level de uma indústria qualquer, qual a relação da sua empresa com uma plataforma de busca digital, provavelmente a resposta será genérica e com pouco acordo prático.
A baixa identificação e baixo tratamento gerencial de relações não evidenciadas podem significar dificuldades futuras para adaptar a cadeia de suprimentos aos novos contextos, colocando em dificuldades seus membros, bem como, significa uma redução substancial na capacidade de inovar.
Essa afirmação pode ser observada empiricamente em novos modelos de negócio que surgiram com a transformação digital, em especial nos chamados negócios de plataforma. Tais propostas de valor se constituem em uma estrutura tecnológica sistêmica, em torno da qual orbitam não só as relações fornecedor e distribuidor, mas também agentes complementares e outros, inovadores, que criam a partir desta plataforma. Forma-se, portanto, um ecossistema no entorno da empresa principal e da sua cadeia de suprimentos, cujos membros complementam o negócio, inovam e influenciam a proposta de valor para os clientes e consumidores.
Um exemplo emblemático deste conceito é o caso de uma indústria de aparelhos de telefonia móvel que desenvolve, produz e distribui celulares através da gestão de sua cadeia de suprimentos, cuja proposta de valor depende de um sistema operacional como Android para funcionar tal qual uma plataforma. A relação entre a plataforma Android e a indústria de celulares é uma relação fornecedor-cliente de duas mãos. Por outro lado, uma série de desenvolvedores de aplicativos e acessórios orbitam no entorno desta relação de fornecimento, criando diversos aplicativos e acessórios e serviços, constituindo um ecossistema da cadeia principal, que influencia o sucesso dessa cadeia principal, é influenciada por ela, e ainda, criam inovações que sustentam ou modificam a proposta de valor da cadeia principal. Por outro lado, esse ecossistema também apresenta relações com os concorrentes, uma vez que desenvolvedores e outros aparelhos operam em paralelo com outra plataforma da tecnologia IOS.
Podemos utilizar esse conceito de ecossistema da cadeia de fornecimento para reinterpretar negócios clássicos e tradicionais. Imagine o leitor uma rodovia sob concessão como uma plataforma tecnológica. Veículos e Concessionária formam uma cadeia principal de fornecedor-cliente, porém quantos complementadores, inovadores e concorrentes estão orbitando no entorno dessa cadeia, muitos deles não sendo alvo de uma análise formal da gestão, ainda que influenciem e impactem na proposta de valor. Neste exemplo, desde um aplicativo de mobilidade até o planejamento de novas empresas dependem da cadeia principal Veículos-Concessionária.
É importante destacar que há outras instâncias do conceito de ecossistema. Autores desenvolveram ao longo da evolução gerencial e tecnológica as diferenças entre Ecossistemas de Negócio, Ecossistemas de Inovação, Ecossistemas de Plataforma. Todos eles têm em comum a abertura conceitual para identificar e analisar relações de interdependência para além das relações de fornecimento e distribuição. Incorporam assim, relações com empresas e agentes de outros setores e mercados a depender se o propósito é estruturar certo negócio, criar um ambiente inovador ou modelar uma plataforma específica.
Esse conceito de relações ampliadas também é comum, evidentemente, ao ecossistema da cadeia de suprimentos ilustrado na figura 2. A diferença fundamental, com implicações práticas para a gestão Lean e dos negócios, é que o ecossistema de cadeia de suprimentos coloca como ponto de partida da análise estratégica, não apenas e empresa que se deseja destacar na análise, mas o conjunto empresa e sua cadeia de suprimentos. As relações não são apenas com a empresa destacada, mas com toda a sua cadeia principal de fornecimento. Isso permite fortalecer o princípio colaborativo da empresa com seus parceiros, e gerenciar em conjunto as relações com o ecossistema, escapando da baixa visibilidade sobre problemas e oportunidades que a análise centrada na empresa principal acarreta aos modelos de gestão tradicionais, os quais, com o propósito de se modernizarem, acabam utilizando conceito de ecossistema com foco restrito e de reduzido impacto. Assim, nossa proposta de escolher a gestão Lean para operacionalizar a análise do ecossistema a partir da cadeia de suprimentos, apresenta importantes implicações gerenciais na sua prática.
- Implicações Gerencias
Considerar que a cadeia de suprimentos está imersa ou envolvida por um ecossistema, implica em oportunidades inéditas de direcionar a governança da empresa para novas relações de suporte ou inovação do negócio. Na gestão Lean a identificação e incorporação do gerenciamento dessas relações é mais bem ajustada à estrutura de governança do que em outros modelos gerenciais, em função do seu princípio colaborativo que permeia a natureza das suas ferramentas de gestão e promovem a cultura da colaboração e da ajuda. Desde a visão macro em mapeamentos dos fluxos de valor, situações descritas e analisadas em planos A3, construção de mapas futuros, até atingir a resolução de problemas ou melhorias em processos e desenvolvimento de inovações, a prática Lean é realizada por meio de grupos interativos, multifuncionais e heterogêneos, com denominações diversas segundo a finalidade, tais como kaizen, jishuken e kaikakus, que no seu conjunto traduzem para a empresa um sistema de colaboração, trazendo maior aceitação e facilidade em incorporar a análise de relacionamentos com diversos agentes internos e externos à empresa, formadores do ecossistema.
Dentro dessa cultura e práticas colaborativa que estão presentes na gestão Lean e tendo o conceito de ecossistema da cadeia de suprimentos, uma sequência de etapas é proposta para a evolução da governança sobre relacionamentos de influência e impacto na organização.
- Declaração contendo a proposta de valor do negócio em operação na cadeia de suprimentos, e o compromisso geral entre agentes do ecossistema. Essa declaração deve nortear a construção dos relacionamentos. Relacionamentos entre agentes da cadeia de suprimentos e do ecossistema que o envolve, devem ter compromisso ético, transparente e colaborativo para promover a proposta de valor. Por outro lado, podem se diferenciar relativamente no grau em que esses aspectos são aprofundados e na frequência em que precisam ocorrer.
- Mapear e classificar os agentes que influenciam e impactam a proposta de valor do negócio da cadeia, partindo da cadeia de suprimentos para seu entorno. Classificação dos agentes em graus de influência e impacto. Influência representa o quanto o negócio tem seus fluxos de valor no estado atual do mercado, estimulados direta ou indiretamente pelo relacionamento atual com determinado agente. Impacto é o quanto uma determinada mudança no grau atual de relacionamento provocaria uma mudança no grau de influência. Dessas análises, agrupamentos de agentes vão sendo identificados e classificados segundo grau de influência e grau de impacto. Relacionamentos com alta influência e baixo impacto direcionam a governança para uma consolidação da estabilidade, mas lançam preocupação sobre a estagnação e necessidade de promover inovação no relacionamento. Por outro lado, agentes cujo relacionamento com a cadeia de suprimentos é de baixa influência e alto impacto, são prioritários para investigar inovações no modelo de negócio através da incorporação de maior influência desses novos agentes.
- Construir um Plano A3 em colaboração com a cadeia de suprimentos que realize ciclos de incorporação das identificações e análises efetuadas sobre o ecossistema. Os ciclos de incorporação podem variar de um melhor suporte à estabilidade da cadeia de suprimento no cumprimento da proposta de valor aos clientes, quanto propor mudanças na proposta de valor e na cadeia. Eventuais conflitos com parceiros constituintes da cadeia podem emergir, seja por não concordar com as análises, seja por divergências na escolha do caminho das mudanças, portanto as incorporações de análise do ecossistema podem suscitar mudanças radicais na cadeia, mas sempre realizadas com as características da gestão Lean de transparência e baseada em fatos e evidencias, aspectos que tornam os conflitos administráveis.
- Acompanhar os ciclos de incorporação operacionalmente no GEMBA, e gerencialmente em salas OBEYA, promovendo visibilidade e interação entre os representantes dos agentes da Cadeia e eventualmente das organizações do Ecossistema alvo do processo de incorporação. O acompanhamento deve ser parte de um conjunto de projetos da Gestão de Supply Chain verificados em ciclos curtos semanais ou quinzenais, como parte de um ciclo PDCA em que as verificações devem suscitar o Acting de prosseguir ou pivotar os planos originais.
A conclusão para a prática da gestão da cadeia de suprimentos é a utilização do conceito de ecossistema combinado com a Gestão Lean na construção de uma nova estrutura de governança que antecipe os problemas sistêmicos da cadeia de suprimentos, tornando-a mais resiliente, ao mesmo tempo em que impactos do ecossistema sobre a cadeia de fornecimento sejam transformados em inovações no modelo de negócio e/ou produtos, buscando aperfeiçoar ou inovar a proposta de valor.
Bibliografia
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Legenvre, H.; Hameri. A.; Golini, R. Ecosystems and supply chains: How do they differ and relate. Digital Business, 2(2), 2022. <https://doi.org/10.1016/j.digbus.2022.100029>.
Moore, J. F. Predators and prey: A new ecology of competition. Harvard Business Review, 1993.