Uma coisa que a Covid-19 provou de forma inequívoca é que as cadeias de suprimentos globais, em todos os setores, estão quebradas. Quando a pandemia começou, vimos isso nas prateleiras vazias dos supermercados ao redor do mundo. Posteriormente, vimos isso na distribuição dolorosamente lenta das vacinas em muitos países, devido a problemas de fornecimento. O fato de que as cadeias de suprimentos globais estão quebradas não é novo, mas o fato de que agora todos sabem disso, é. Também não é novo que o método que poderia melhorar dramaticamente a situação está sendo culpado pelo fracasso: o sistema puxado criado pela Toyota há mais de meio século, conhecido como Just-In-Time. Portanto, o lançamento do livro de Christoph Roser Tudo sobre Produção Puxada, em 2021, foi muito oportuno[1].
O que é um sistema puxado? Aqui está um pouco de contexto.
O livro de Roser explora profundamente os detalhes do sistema puxado, um método de alinhar oferta e demanda que é amplamente referenciado, mas mal compreendido. A definição acadêmica mais aceita de sistema puxado é de Wally Hopp e Mark Spearman, que afirmam, em seu influente artigo de 2004, que a característica definidora de um sistema puxado é a presença de limites para o controle do estoque: “Um sistema de produção puxada é aquele que explicitamente limita a quantidade de trabalho em processamento no sistema”.
Essa é uma definição simples, o que a torna atraente; mas, está incorreta. A Toyota desenvolveu o sistema puxado e o design da cadeia de suprimentos através da prática no mundo real, em um momento em que não tinha acesso a fornecedores automotivos e, portanto, precisava inovar. O estoque não era o principal problema que estavam tentando resolver (nem é hoje). O problema crítico da cadeia de suprimentos (ou, como os pensadores lean preferem chamar, do fluxo de valor) é que cada ponto na cadeia precisa saber, a qualquer momento, exatamente o que produzir e o que mover. Isso envolve, de fato, o problema do estoque, que leva a muitos outros problemas associados (incluindo custos de armazenagem, dentre outros). Por essa razão, especialistas, acadêmicos e até mesmo praticantes tendem a focar nas pilhas de coisas que chamamos de estoque sem olhar mais a fundo para entender as causas mais profundas. As pilhas estão lá. Elas continuam a crescer. Bloqueiam nossa visão.
Um sistema puxado, como o sistema Just-In-Time mais amplo da Toyota, aborda o problema do design da cadeia de suprimentos não apenas do ponto de vista do controle de estoque. Como podemos organizar todo o trabalho, todo o material e todo o tempo envolvidos em uma longa cadeia de suprimentos para que ela opere da forma mais eficaz e eficiente possível? Como podemos fazer com que cada etapa produza exatamente o que a próxima precisa, no momento certo e na quantidade necessária? Um processo de planejamento de cima para baixo é a melhor maneira, informando cada etapa de um grande sistema de suprimentos o que produzir e quando? Tal abordagem pode funcionar, se tudo acontecer conforme o planejado. Mas, infelizmente, no mundo real, tudo correr conforme o planejado é algo cada vez mais raro. Coisas dão errado. Máquinas param de funcionar. Caminhões quebram. Humanos cometem erros. E, de qualquer forma, no mundo de hoje, os clientes tomam decisões de última hora. As pessoas mudam de ideia. Então, como podemos organizar toda essa complexidade quando o início da cadeia de suprimentos está a meio mundo e meio ano de distância do cliente?
Esses são os problemas que os sistemas puxados abordam a partir de um conjunto de premissas não convencionais. Manter o estoque mínimo é desejável, sem dúvida, mas (desculpe, Hopp e Spearman) definir limites de estoque não é a característica definidora de um sistema puxado. A quantidade de estoque necessária é o resultado de ações tomadas e decisões direcionadas para resolver múltiplos problemas — principalmente, como garantir que o que é necessário chegue onde é necessário, quando é necessário, nem tarde demais nem cedo demais
Aqui está a definição de produção puxada do Léxico Lean: “Método de controle da produção em que as atividades fluxo abaixo avisam as atividades fluxo acima sobre suas necessidades. A produção puxada tenta eliminar a produção em excesso e é um dos três componentes principais de um sistema de produção Just-In-Time completo”. E note que, embora o estoque mínimo ou até mesmo 'estoque zero' possa ser 'ideal', no mundo real, os estoques podem ser usados estrategicamente de seis maneiras distintas para tornar o sistema geral mais eficaz e eficiente, e não apenas localmente eficiente.
A Toyota descobriu cedo (assim como, mais recentemente, a Tesla) que a indústria automotiva apresentava uma infinidade de problemas complexos além dos óbvios de projetar, construir e comercializar o produto. Há funcionários a serem contratados e treinados, peças e materiais a serem adquiridos, produtos a serem vendidos e serviços a serem prestados, além de questões regulatórias a serem enfrentadas. E há a difícil questão de gerenciar as milhares de peças e materiais que compõem um carro. Por mais simples que pareça, organizar o fluxo constante de materiais pode ser tão desafiador quanto transformá-los no produto final!
Kiichiro Toyoda, fundador da Toyota, teve a ideia – e até criou o nome curioso – do 'Just-In-Time' na década de 1930, durante uma missão de reconhecimento no Reino Unido. Ele perdeu uma conexão de trem, o que lhe ensinou uma lição inesquecível sobre a importância da pontualidade, inspirando a visão de que se deve chegar exatamente na hora certa. Enquanto sua empresa no Japão aprendia a fabricar automóveis, a fábrica enfrentava o problema de sempre ficar sem peças e materiais. A solução foi trazer os materiais diariamente, justo a tempo (just in time) para serem fabricados ou montados.
Uma década depois, o gerente da produção de Kiichiro, Taiichi Ohno, começou a experimentar sistemas puxados simples no chão de fábrica. Ele percebeu que os trabalhadores nas etapas seguintes frequentemente ficavam sem os materiais necessários, enquanto as etapas anteriores estavam ocupadas produzindo os itens errados. Para resolver o problema da 'superprodução' (produzir demais ou, como muitos ignoram, cedo demais), ele reverteu o fluxo de informações – usando cartões Kanban ou os próprios recipientes vazios – instruindo cada operação sobre o que produzir e mover. (Ohno não inventou o sistema puxado; ele desenvolveu o sistema puxado definitivo e sustentável). (Uma nota para os lean geeks: os Mapas de Fluxo de Valor, também conhecidos como Análise de Fluxo de Material e Informação, rastreiam as informações de controle ou instrução – não todas as informações que circulam em qualquer sistema de trabalho. Essa é uma distinção especialmente crítica ao 'mapear' – para analisar e melhorar – um sistema em que o produto é uma forma transformada de informação).
No final, duas regras simples prevaleceram: 1) nunca produza ou mova em excesso, 2) nem de forma insuficiente. Simples, de fato. Mas para transformar essas regras simples numa regra no mundo real é necessário inverter a lógica: puxar, não empurrar. Comece conectando processos individuais. Faça a produção em fluxo, idealmente uma peça por vez onde for possível. Onde não for possível fluir diretamente de uma etapa de criação de valor para outra, conecte processos distintos através de algum mecanismo (como o Kanban) para permitir que os processos posteriores puxem dos processos anteriores o que precisam, quando precisam. Com essas conexões feitas, e o fluxo de peça única (one piece flow) estabelecido onde possível, foque em encurtar os tempos de ciclo entre cada etapa, resultando em um fluxo de valor de alta velocidade e altamente responsivo. Simples! E brilhante!
Mas simples não significa fácil, e brilhante não significa necessariamente intuitivo.
Minha primeira exposição ao sistema puxado da Toyota foi na primeira metade de 1984, no chão de fábrica da estamparia da Fábrica de Montagem Takaoka. A Toyota estava se preparando para o início das operações na NUMMI (New United Motor Manufacturing Inc.), a joint venture da empresa com a General Motors em Fremont, Califórnia. Meu momento 'eureka' – 'Ah, então é isso que o JIT significa!' – veio depois, e não durante o meu treinamento na fábrica, quando eu deveria aprender tudo sobre o TPS.
Embora eu ainda fosse novo no processo, já estava na posição de explicar o TPS para visitantes, a maioria da General Motors. Embora eu tivesse aprendido o suficiente para oferecer uma explicação básica do Kanban e da 'produção puxada vs produção empurrada', eu realmente não entendia completamente. Um dia, quando fui pressionado a explicar de verdade o que era a produção puxada e por que era tão importante, fiquei frustrado com um gerente de produção da GM em particular, assim como ele estava frustrado comigo.
Um gerente de nível médio, com décadas de experiência, me pressionou: 'Não entendo. E daí? Ouço o que você está dizendo, mas não vejo qual é o grande problema. Por que eu deveria me importar com 'puxar em vez de empurrar'? Não enxergo a vantagem.' Fiquei tão frustrado quanto ele, irritado porque ele não conseguia entender as mesmas explicações que pareciam ser suficientes para os outros. Minha frustração aumentou quando percebi que eu mesmo não sabia exatamente qual era o grande diferencial.
Acho que a minha frustração – primeiro com o visitante e depois, gradualmente, comigo mesmo – foi a faísca que levou ao insight e ao meu momento 'eureka'. Fui subitamente impactado pelo poder de todos esses ciclos rápidos de reposição que se repetiam aparentemente sem fim por toda a cadeia de suprimentos. O pequeno ciclo de fluxo de material e informação que observávamos era fractal. No dia seguinte, visitamos fornecedores externos conectados à fábrica por Kanbans, onde os Kanbans circulavam até oito vezes por dia. Um sistema com loops de feedback, autocorretivo e verdadeiramente revolucionário.Sistemas dentro de sistemas, dentro de um sistema.
Em poucos meses, a NUMMI estava em pleno funcionamento e o mundo fora da Toyota estava tendo seu primeiro contato direto com um sistema puxado bem-sucedido em operação. Ainda assim, o que os observadores podem ver na superfície – como o baixo estoque – é apenas o resultado. O trabalho nos bastidores para executar um sistema que parece tão simples é, na verdade, enganadoramente simples. Até hoje, é raro encontrar empresas dispostas a investir no desenvolvimento da capacidade organizacional necessária para se transformar com sucesso para um sistema puxado. (A Toyota considera a conversão da produção empurrada para puxada uma característica definidora do funcionamento avançado do seu sistema Just-In-Time, que é um componente importante do Sistema Toyota de Produção. No entanto, o sistema puxado é apenas uma parte do JIT, juntamente com os conceitos e práticas de criação de fluxo contínuo com um Takt Time definido. Um sistema JIT completo – o item certo, no lugar certo, na quantidade certa e no momento certo, sem faltas ou superprodução – exige muitos outros elementos além da puxada (que, afinal, é apenas uma técnica), incluindo a localização e a escala para instalação da capacidade, as relações entre OEM dos fornecedores, e, acima de tudo, uma compreensão precisa e profunda das necessidades dos clientes!
MAL-ENTENDIDOS, FALÁCIAS, CONFUSÕES E OS DANOS CAUSADOS
É realmente lamentável que o caminho mais viável para corrigir os problemas nas cadeias de suprimentos seja frequentemente culpado por seus fracassos. Acadêmicos (como os mencionados acima) não têm o monopólio da disseminação de mal-entendidos sobre a dinâmica das cadeias de suprimentos. Periodicamente, até mesmo as revistas mais conceituadas publicam artigos culpando o Just-in-Time ou a manufatura lean pelos problemas de suprimento. A escassez de bens, como a que se seguiu ao 11 de setembro (Jim Womack e Dan Jones responderam naquela época na coluna do Lean Enterprise Institute - LEI) ou as interrupções causadas pelo grande terremoto e tsunami que atingiram o Japão em 2011 ou pela pandemia de Covid-19 (previsivelmente desmascarada por Womack em 2006), invariavelmente levam a absurdos como o artigo de destaque no Wall Street Journal no final de 2020: 'Por que ainda não há toalhas de papel suficientes?' Nele, o autor escreve: 'Culpe a manufatura lean. Um esforço de décadas para extrair mais lucro mantendo o estoque baixo deixou muitos fabricantes despreparados quando a Covid-19 os atingiu. E a produção dificilmente aumentará significativamente em breve.' (LEI respondeu a isso por meio de uma carta ao editor).
No início de 2021, a crise global das cadeias de suprimentos – que envolveu itens talvez mais desafiadores do que papel higiênico – incluiu semicondutores e questões geopolíticas. Políticas que haviam levado a três décadas de busca pelos menores preços unitários na China acabaram sendo revertidas. O pêndulo balançou novamente. Em meio a tudo isso, há um caminho melhor
UM CAMINHO A SEGUIR
Apresentando o oportuno livro de Christoph Roser, Tudo sobre Produção Puxada. Com seu trabalho, Roser não pretende nos oferecer uma simplificação rápida para leitores eventuais de 1.500 palavras. O conteúdo dessas páginas exigirá que vocês, praticantes, façam algum esforço.
Roser apresenta várias técnicas e ferramentas que ajudarão a reconfigurar as operações da cadeia de suprimentos. Mas, mais importante, ao explorar diversas abordagens e métodos, ele desafia os leitores a repensar suas estratégias, reconsiderar o que seu sistema de suprimentos precisa alcançar e por quê. Como fazer com que cada item esteja no lugar certo e na hora certa? Como as milhares de pessoas e processos de um fluxo de valor estendido podem fazer o trabalho certo no momento certo?
A verdadeira natureza de uma empresa lean é um sistema de negócios holístico. Nele, tudo está conectado. Portanto, a disciplina de otimização pontual – que foi o foco de décadas de pesquisa sobre cadeias de suprimentos e tornou-se um dogma agora aceito – normalmente cria desperdício em todo o sistema, exceto no ponto que está sendo otimizado. Até que os líderes da cadeia de suprimentos direcionem a sua visão para todo o fluxo de valor, as economias serão ilusórias e as melhorias insustentáveis.
O poder do lean se manifesta no gemba através da forma como as atividades são conectadas, e a desconexão dessas ligações – seja no chão de fábrica ou no fluxo de valor estendido – destrói a principal dinâmica de um sistema lean: a capacidade de aprender e se adaptar. Fragmentar o gerenciamento da cadeia de suprimentos em pontos desconectados com menor preço por peça ou em algoritmos de otimização resulta na perda da capacidade de construir uma cadeia de suprimentos racional, prática e adaptável, configurada como um sistema vivo que aprende. Isso desafia os gestores a compreenderem profundamente como seus fluxos de valor funcionam atualmente e a projetarem versões melhoradas, que sejam gerenciáveis e adaptáveis às condições do mundo real, que mudam rapidamente.
Projetos de sistemas que ignoram o lado humano da tomada de decisões e esperam controlar as cadeias de suprimentos apenas ou principalmente por meio de soluções tecnológicas não resolverão nossos problemas. Decisões centralizadas (feitas por humanos no estilo comando e controle ou por máquinas utilizando IA no estilo 'caixa preta') estão condenadas ao fracasso por dois motivos: 1) no mundo de hoje, elas não conseguem igualar a adaptabilidade dinâmica de um sistema de tomada de decisões distribuído, e 2) toda vez que se separa a tomada de decisões da responsabilidade de quem realiza o trabalho, tira-se dessas pessoas o senso de propriedade e engajamento, aumentando a probabilidade de erros e até sabotagem, devido à alienação. Por outro lado, o sistema puxado via Kanban ou qualquer outro meio – junto com os outros elementos de um sistema de produção Just-In-Time e, de fato, todas as ferramentas e métodos de um sistema lean – distribui a responsabilidade para o local em que o trabalho está acontecendo. Ohno falava de 'democracia do Kanban', um sistema elegante com responsabilidade e autorização distribuídas dinamicamente com base na necessidade e em regras transparentes de atuação.
Os designers de sistemas de suprimentos têm inúmeros problemas a resolver e abordagens para enfrentá-los. A mudança para o sistema puxado é um desafio técnico, mas também exige uma mudança fundamental na mentalidade não apenas dos profissionais da cadeia de suprimentos, mas também dos CEOs. E isso requer trabalho em equipe em larga escala. Não há como negar a necessidade de sistemas de suprimentos eficazes que atendam às complexidades em rápida evolução do século 21. Aprender os princípios e práticas da produção puxada é um ótimo ponto de partida.
[1] O livro Tudo sobre Produção Puxada, de Christoph Roser, em português, encontra-se disponível no LeanShop.
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