Há tempos as empresas brasileiras não enfrentavam de forma tão intensa essa "ferida" que ameaça comprometer competitividade, inovação e sustentabilidade: a escassez crescente e evidente de profissionais qualificados em diversos setores, assim como a dificuldade de retenção após a contratação. Um fenômeno que se revela tanto local quanto global.
No Brasil, uma pesquisa recente da Confederação Nacional do Comércio (CNC), que usou dados do Banco Central (BC), apontou que 40% das 231 principais profissões demonstravam, em junho deste ano, indícios fortes de escassez de mão de obra. E isso já prejudicava negócios num nível recorde só identificado anteriormente em dezembro de 2021.
O problema cresce a galope: em junho de 2014, essa escassez era menor que 15%. Ela quase triplicou em uma década e se agravou pelo recente recuo de 0,7 ponto da taxa de desocupação, hoje em 6,8%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, a maioria qualificada está empregada. E não se encontram facilmente candidatos para reposições.
No mundo não é diferente: 77% das empresas sofrem para encontrar profissionais, maior percentual dos últimos 17 anos, informa o Global Talent Shortage 2023, da ManpowerGroup. E já se espera um déficit, até o ano de 2030, de 85 milhões de especialistas em ciência de dados, cibersegurança e inteligência artificial. Isso pode gerar perdas anuais de até US$ 8,5 trilhões, avalia o Fórum Econômico Mundial.
Algumas pistas sobre as causas do fenômeno já são conhecidas: avanços do trabalho informal, do empreendedorismo digital e de certos tipos de trabalhos autônomos (como motoristas de aplicativos e entregadores), tendências que "roubam" trabalhadores de atividades mais tradicionais.
O cenário se complica ainda mais ao se perceber que o mercado recebe hoje a “geração z”. São os “nativos digitais”, nascidos entre a segunda metade da década de 1990 e o início da de 2010, chamados também de zoomers ou centennials. Seus perfis são conhecidos e reúnem características interessantes, mas desafiantes.
São hiper conectados, criativos e autênticos. Adaptam-se a multitarefas e buscam o empreendedorismo. Super valorizam autonomia, diversidade, mobilidade e inclusão social. Integram a “geração ansiosa”, turbinada pelas redes sociais, pelos trabalhos híbridos e remotos, com dificuldade em desenvolver vínculos também no trabalho. Questões que são ainda desafios para empresas mais tradicionais.
E, mais uma vez, a maneira como se gerencia pode ser decisiva. A gestão precisa estar atenta a esse desafio e preparar o terreno para que as empresas realmente consigam formar, desenvolver, atrair e reter profissionais. Nesse cenário, a maneira lean se destaca, pois sua abordagem sociotécnica valoriza a comunicação e os relacionamentos humanos. Quando bem aplicada, ela é capaz de derrubar barreiras, aproximar e desenvolver pessoas, criando um ambiente favorável para atrair e manter profissionais.
Propósitos inspiradores
O primeiro passo é simples, mas essencial: definir propósitos claros, centrados na criação e entrega de valor ao cliente em todas as ações da empresa. Mais do que isso, é preciso que esses propósitos sejam implementados, comunicados e desdobrados de modo que todos compreendam exatamente como seus esforços se alinham em favor do cliente e da sociedade, e não apenas para o lucro da empresa. É importante que as pessoas sintam, de fato, que suas contribuições têm impacto real no todo.
Conectada a isso, a gestão precisa dar condições para que os indivíduos tenham olhar crítico e aprimorem cotidianamente as atividades que desempenham. Eles precisam sentir que não desperdiçam tempo e energia com atividades desnecessárias e são capazes de produzir cada vez mais e melhor. Isso reforça o prazer, o orgulho e o sentido das atividades, potencializando a autoestima.
A gestão também deve criar um ambiente de plena segurança psicológica. Onde as pessoas se sintam verdadeiramente incluídos. Isso significa não ter medo de punição, retaliação ou assédios. E sentir liberdade em poder, de forma responsável e orientada, fazer perguntas, buscar respostas, aprender e ensinar. Até mesmo errar e desafiar os padrões estabelecidos. Sempre no sentido de gerar aprendizados coletivos, resolver problemas de forma colaborativa, fomentar a inovação e a criação de valor.
Lideranças “z”
Para isso, é fundamental formar lideranças completas e bem preparadas. Líderes que sejam parceiros, engajadores e que estejam sempre presentes no gemba, ouvindo ativamente, desafiando e oferecendo suporte. Assim como seus liderados, eles devem ensinar e aprender continuamente, incentivando o trabalho autônomo em equipe. É importante que criem condições para o sucesso, ajudando as pessoas a alcançarem seu máximo potencial.
E, sendo o sistema de natureza “sociotécnica”, a parte técnica, quando bem estruturada, também pode ajudar a desenvolver e reter profissionais. Por exemplo, ao mapear fluxos de valor, identificando e eliminando gargalos e retrabalhos, ou ao estabelecer padrões e rotinas claras e amplamente compartilhadas. Além disso, incentivar o uso de métodos científicos para expor e solucionar problemas, como o A3 e o PDCA, é essencial. Sem esquecer a importância do Gerenciamento Diário (GD), que fortalece a união e o compromisso diário com a melhoria contínua.
Todas essas dimensões sociais e técnicas do sistema lean certamente tornam as pessoas mais empáticas, criam vínculos sólidos e relacionamentos mais duradouros. E podem disparar círculos virtuosos de melhoria na comunicação e na redução da ansiedade. Assim como melhorar a experiência e a vivência dos trabalhadores. Com isso, os indivíduos se engajam mais, não pensam em mudar de empresa, mas, ao contrário, querem crescer junto com ela. Isso fortalece as organizações em diferentes frentes. Por exemplo, na busca pela proteção ambiental, no aprofundamento das soluções aos problemas sociais e no aperfeiçoamento da governança corporativa.
A escassez de mão de obra é uma questão cada vez mais evidente no cenário corporativo. Embora sua solução exija avanços estruturais em áreas como política, economia e educação, as empresas têm a oportunidade de fazer a diferença ao revisar suas premissas e práticas de gestão. Ao se tornarem mais atrativas e acolhedoras, elas podem criar um ambiente que favoreça a realização profissional e o desenvolvimento das novas gerações, contribuindo para a sustentabilidade e competitividade a longo prazo.