CULTURA E LIDERANÇA

A arte de ser o que se é – mesmo na empresa

Flávio Battaglia e Luciana Gomes
A arte de ser o que se é – mesmo na empresa
O que é (e o que não é) a segurança psicológica; quais são as suas vantagens e elementos estruturantes e como a organização precisa transformar suas lideranças para atingir essa evolução na gestão

"A vida pode ser maravilhosa se não tivermos medo dela", já disse, certa vez, Charles Chaplin, no filme "Luzes da Cidade", de 1952. Simples, mas profunda, a lendária frase do genial ator, comediante e cineasta inglês faz, hoje, cada vez mais sentido no universo corporativo.

É que as empresas estão descobrindo que uma companhia “sem medo” também pode ser mais “feliz”. Ou seja, mais produtiva, inovadora, competitiva, flexível, econômica e, portanto, lucrativa. No entanto, para que isso ocorra de fato é preciso primeiro desenvolver nos ambientes um elemento cada dia mais falado, mas nem tanto praticado: a “segurança psicológica”.

Uma das bases do sistema lean, é, em resumo, o desafio diário de criar, estruturar e manter uma cultura e mentalidade, no local de trabalho, em que todos os indivíduos, independentemente de cargos e níveis hierárquicos, possam se expressar livremente, verdadeiramente e jamais “de fachada”.

Isso significa um certo “empoderamento” para conseguir, por exemplo, manifestar as ideias, mesmo que contrárias às do “chefe” ou às da maioria. Também a liberdade para revelar, expor e falar sobre os problemas como eles de fato são. Mais do que isso, a permissão e até o incentivo para demonstrar e assumir os próprios erros e equívocos, sejam quais forem. Sempre no sentido de aprender, corrigir e pedir ajuda para melhorar cotidianamente.

E talvez o mais importante: fazer tudo isso sem qualquer receio, vergonha ou medo de se sentir culpado ou sofrer com julgamentos injustos, cobranças agressivas, retaliações cruéis e muito menos assédios morais de quaisquer naturezas.

Na gestão lean, isso é uma etapa fundamental de evolução porque se as pessoas não sentirem essa segurança psicológica elas obviamente não falarão sobre problemas e muitos menos os resolverão. Pior do que isso, tenderão a sempre empurrar a “sujeira para debaixo do tapete”.

Uma empresa com altos níveis de segurança psicológica pode até parecer um sonho ou uma utopia, mas muitas organizações estão descobrindo que é possível evoluir nesse sentido e, com isso, ter melhores resultados.

Para tanto, é preciso desenvolver na cultura e na mentalidade organizacional uma série de elementos que consigam, mesmo que aos poucos, construir e estruturar ambientes, formas de pensar, relacionamentos, comunicações e comportamentos diferentes dos tradicionais.

Por exemplo, é necessário estruturar um espaço de trabalho verdadeiramente “inclusivo”. As pessoas precisam perceber que foram contratadas porque a companhia, de fato, as aceitas como elas são, incluindo seus atributos físicos e intelectuais.

Em paralelo, um ambiente organizacional jamais terá segurança psicológica se os indivíduos não se sentirem seguros para aprender a todo momento e em todas as atividades que fazem. Para isso, não se pode ter medo de aprender, de fazer perguntas, de ser avaliado e, principalmente, de errar.

Ao mesmo tempo, as pessoas devem perceber que a empresa efetivamente quer, leva em consideração e valoriza as suas boas contribuições: os bons trabalhos, as ideias relevantes, os projetos fundamentados, as críticas construtivas, o compartilhamento de experiências, as trocas de informações...

E é preciso desenvolver o elemento talvez mais desafiador dessa evolução organizacional: empresas com níveis avançados de segurança psicológica propiciam condições para que colaboradores de níveis hierárquicos mais “baixos” da tradicional pirâmide organizacional consigam, realmente, “desafiar o status quo”. Ou seja, de maneira responsável, científica, técnica e respeitosa, possam apontar problemas e possibilidades de melhorias em estruturas feitas e/ou mantidas por seus superiores ou até de outras áreas. Sem ter medo de caras feias e represálias.

Tudo isso só é possível se houver lideranças preparadas e dispostas a construir esse ambiente, cultura e mentalidade. São elas que vão idealizar e formatar esses locais, as estruturas necessárias e as equipes, para que as pessoas saibam como, porque e quando poderão se expressar sem medo.

Para isso, são fundamentais algumas definições estratégicas das empresas com relação aos estilos de liderança que querem e precisam. Talvez o mais essencial seja selecionar ou desenvolver líderes que demonstrem humildade. Que entendam que não sabem tudo. Que reconheçam seus erros, pontos fracos e lacunas. Que assumam vulnerabilidades e dúvidas. O exemplo deve sempre vir de cima.

Isso só poderá ocorrer de fato se as lideranças conseguirem colocar em prática a chamada “investigação positiva”. Ou seja, interagir com liderados de uma maneira diferente da tradicional. Significa uma certa maneira de falar, de perguntar, de ouvir, de reconhecer e até de agradecer, sempre no sentido de reforçar a segurança psicológica, sem jamais fragilizá-la, seja por discursos orais, escritos ou mesmo “corporais”. A linguagem do corpo também pode revelar uma comunicação agressiva, mesmo que as palavras sejam brandas.

Mais do que isso, as empresas precisam construir e manter vivas estruturas de gestão que estimulem as pessoas a, com responsabilidade e técnica, exporem e investigarem problemas. Que provoquem os times no sentido de experimentarem de maneira responsável, protegendo as pessoas quando assumirem riscos associados ao aprendizado profundo.

Por exemplo, no Gerenciamento Diário (GD), que, nesse contexto, precisa ser um espaço diário e cotidiano para que indivíduos possam, juntos, analisar os processos, buscar as falhas, causas raízes e discutir soluções. Sem medo de errar, pensando e aprendendo. E dando as boas-vindas a opiniões divergentes, mesmo que contrárias às do “chefe”.

Nesse contexto, as lideranças precisam deixar claro os propósitos: como eles serão construídos, desdobrados, disseminados, compartilhados e atribuídos às pessoas, conforme as competências e habilidades de cada um.

Outra necessidade urgente é "despersonalizar" os problemas. Isso significa estabelecer e promover uma cultura onde se assume – e se pratica diariamente – que, até que se prove o contrário, os problemas não estão nas pessoas, mas nos processos. São os processos mal projetados que devem ser “responsabilizados”.

Para isso, líderes precisam se afastar da típica liderança “comando e controle”, cujas características já são conhecidas. É um estilo centrado em dar ordens. Focado na crença hierárquica de que quem sabe mais é quem ocupa o cargo mais alto. Preconiza não dar liberdade para que as pessoas testem experiências fundamentadas. Dissemina a mentalidade do “sempre foi assim” ou “já tentamos isso, e não deu certo”. Não admite divergências ou discordâncias. Fica chateado quando alguém se mostra insatisfeito com suas comunicações, atitudes ou comportamentos baseados no poder hierárquico. Adora colocar culpa neste ou naquele, mesmo que de maneira velada.

Tudo isso é sempre captado e entendido por todos. Por vezes, gera sofrimentos individuais. E, no geral, não permite ou enfraquece qualquer tentativa de se estruturar a real segurança psicológica na organização.

Tão importante quanto entender “o que é” segurança psicológica é saber “o que é não é”, para não se investir energia em “placebos”. Não é sobre ser “bonzinho”, falar o que os outros querem ouvir ou evitar conflitos.

Ao contrário, uma organização psicologicamente segura incentiva a discussão profunda e detalhada de problemas, sempre no sentido de encontrar as causas dos problemas e implementar contramedidas específicas, mas sem gerar culpas ou medos que abalem a perspectiva emocional das pessoas.

Também não tem a ver com características de personalidades – por exemplo, pessoas simpáticas, carismáticas, serenas, educadas, introvertidas ou extrovertidas. Tampouco significa confiar mais ou menos em alguém. Muito diferentemente disso, trata-se de criar uma nova maneira de se relacionar em grupo.

Não se opõe a responsabilizar os indivíduos pelo trabalho que fazem, o que é muito diferente de punir as pessoas quando as coisas dão errado. Trata-se de encorajar os indivíduos a aceitarem erros, mas no sentido de que eles os vejam como oportunidades para melhorar os trabalhos e os processos.

Não é preciso muito esforço para entender os benefícios da segurança psicológica. Ao promover uma certa libertação dos indivíduos com relação ao sofrimento emocional cotidiano, que é uma marca da gestão tradicional, ela libera energia cerebral para a criatividade. Portanto, abre flancos poderosos na geração de processos e produtos mais inovadores.

Além disso, já se sabe que pessoas mais felizes tendem a cultivar relacionamentos saudáveis e duradouros. Isso, por sua vez, fortalece a conexão e o engajamento no trabalho, aspectos altamente valorizados e buscados no ambiente corporativo atual.

Ao fomentar maior felicidade no dia a dia de trabalho, essa prática também contribui para a retenção de talentos, reduzindo a rotatividade que muitas vezes resulta da insatisfação profissional. Além disso, um ambiente de maior bem-estar ajuda a diminuir o estresse e a fortalecer a saúde das pessoas.

Tudo isso culmina em algo essencial: torna a empresa mais humana.

Publicado em 09/09/2024

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Luciana Gomes
Head para Bancos e Varejo no Lean Institute Brasil

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