DESENVOLVIMENTO DE PRODUTOS E PROCESSOS

Certo na primeira vez

Flávio Battaglia e Ricardo Itikawa
Certo na primeira vez
Entenda os “pontos críticos” para assimilar e praticar o LPPD (Lean Product and Process Development), a maneira lean de desenvolver produtos e processos

É nítido que o mercado está mais implacável e intolerante com os equívocos das empresas. Em tempos de hiper competição, inovações por minutos e consumidores mais exigentes e seletivos, a margem para o erro se estreita. Talvez nunca tenha sido tão importante entendermos e utilizarmos as técnicas e conceitos lean aplicados ao desenvolvimento de produtos, serviço e processos: o LPPD.

Trata-se de um conjunto de premissas e práticas que aumentam consideravelmente a eficiência e a precisão com que a empresa desenvolve suas ofertas, criando capacidades inéditas de inovação, com tempos reduzidos e produtos cada vez mais alinhados às reais expectativas dos clientes. Em essência, envolve o despertar da organização para uma nova maneira de pensar, agir e gerenciar o desenvolvimento.

O LPPD atua democratizando informações, eliminando desperdícios no design, resolvendo problemas a cada etapa, desenvolvendo as pessoas e, finalmente, criando produtos e serviços que efetivamente entreguem aos clientes soluções concretas para os problemas que eles querem resolver.

Com o intuito de aprofundar o entendimento sobre os meios de aplicação, elencamos pontos relevantes que precisam ser entendidos e praticados, no sentido de tornarmos o LPPD uma realidade para organizações que, mais do desejar, precisam “fazer certo da primeira vez”.

 

Entender valor para o cliente em profundidade

As bases do LPPD parecem óbvias, mas não são: compreender, projetar, produzir e entregar exatamente o que os clientes desejam (ou precisam). Para isso, faz-se necessário desenvolver processos e rotinas específicas, maximizando a utilização das capacidades humanas e tecnológicas para criar experiências perfeitas para os clientes.

Atualmente, dispomos de ferramentas digitais acessíveis, que podem ampliar consideravelmente nossa capacidade de capturar o que de fato significa valor para nossos clientes. O principal desafio talvez seja retroalimentar os esforços de desenvolvimento a partir dessa percepção “na ponta”. Como garantir que todos os “inputs” sobre o desempenho de produtos e serviços atuais (SACs, NPS etc.) de fato retroalimentem os esforços de desenvolvimento?;

São pontos essenciais com os quais muitas empresas ainda “batem cabeça”, pois não conseguem capturar e incorporar, com precisão, quais são, de fato, os reais atributos de valor priorizados por seus clientes. Assim, não traduzem em oferta aquilo que o cliente considera fundamental e continuam desenvolvendo seus produtos e serviços condicionados por restrições históricas e suas conveniências inerciais.

 

Fluxos “a 10 mãos”

Para mudar isso, um ponto fundamental é entendermos como promover a sincronização entre as etapas do fluxo de valor estendido de desenvolvimento, que vai desde a concepção de um produto (ou serviço) até seu lançamento.

Por vezes complexo, esse macroprocesso possui, na maior parte das vezes, uma quantidade enorme de etapas e áreas funcionais envolvidas que se complementam e se misturam. É preciso, então, analisar e sincronizar, integrando todos os fluxos de trabalho. Isso significa, como base essencial, entender que não há um fluxo mais importante do que o outro, que todos precisam estar em pleno alinhamento.

Muito se fala, por exemplo, da importância das áreas de “engenharia” no desenvolvimento. Claro que são importantes. No entanto, é preciso considerarmos que, sozinha, a engenharia pouco ou nada faz. Ela depende de outros fluxos de trabalho, como da cadeia de fornecedores, do planejamento e da produção. Assim, o LPPD exige trabalho coordenado de times multifuncionais e polivalentes. Trabalhando, pensando e aprendendo juntos.

 

Prototipagem inteligente

No ambiente de desenvolvimento, é essencial fazer simulações por meio da prototipagem, física, digital ou híbrida. Essa prática aglutina a cadeia de stakeholders envolvida no macroprocesso: engenharia, compras, fornecedores, operação, vendas e pós-venda. Protótipos permitem visualizar detalhes, perceber sensações e avaliar potenciais pontos de melhoria. Isso melhora a qualidade das decisões técnicas e evidencia oportunidades para reduções de custos.

Trata-se de uma experimentação que também precisa ser feita a “10 mãos”, mas não somente em ambientes virtuais, com base em modelos e por meio de softwares. Em muitas situações, não se deve renunciar a protótipos reais, se possível em escala real. Com o uso cada vez mais intensivo da tecnologia ao longo dos anos, muitas empresas partiram para drásticas reduções dos protótipos reais, focando somente em versões digitais para reduzir custos e lead times. Isso, por vezes, deixa passar detalhes importantes que somente a escala real é capaz de proporcionar.

O movimento faz sentido, mas a realidade tem mostrado que protótipos físicos, utilizados em momentos críticos e de maneira apropriada, podem ser decisivos para o sucesso de uma jornada de desenvolvimento. Sem simularmos a realidade material de algumas situações, dificilmente conseguimos enxergar e antecipar determinados tipos de problemas. Se não visualizamos isso nas etapas de desenvolvimento, todo o retorno sobre o investimento pode ficar comprometido em momento seguinte.

 

Governança “dentro e fora”

Todas as dimensões do LPPD – entender o que é valor para o cliente, desenvolver processos, estruturar a solução de problemas, preparar as lideranças, gerar um ambiente empreendedor e fazer uma boa gestão do conhecimento – precisam ser estruturadas e administradas no dia a dia por bons processos de gestão e governança.

As práticas vão além de “simplesmente” desenvolver um novo produto ou serviço. Trata-se da estruturação de uma série de novos métodos e competências que tornam as empresas mais aptas a responder rapidamente frente a qualquer necessidade ou desafio de mercado. Portanto, boa governança e gestão transparente são elementos fundamentais para a sustentação das práticas ao longo do tempo.;

E isso precisa perpassar os “muros” da organização. LPPD, para ser realmente efetivo, pressupõe a busca por fluxos de valor cada vez mais integrados, conectados de maneira eficaz de “ponta a ponta” ao longo da cadeia de valor estendida.

 

Devagar porque temos pressa

Outro ponto importante é sempre planejar da maneira mais detalhada possível antes de sair executando. Se você planeja com cuidado e da maneira correta, evita retrabalhos. Há uma espécie de “lema” no bom desenvolvimento de produtos que diz: “vamos devagar porque estamos com pressa”.

“Ir devagar” quer dizer priorizar o planejamento antes de qualquer execução. Discutir e entender o propósito antes de executar ações ou decisões críticas. E “estar com pressa” significa que não queremos perder tempo com entraves previsíveis que poderiam ser tranquilamente dirimidos com uma boa preparação.;

Nesse contexto, além de pensar no produto é preciso projetar os processos específicos que vão produzi-lo e entregá-lo. Muitos pecam nesse ponto. Priorizam o novo produto ou serviço, mas se esquecem que, na maioria das vezes, é necessário estruturar novos processos para incorporá-los ao portifólio de ofertas existentes de maneira harmônica, sem desperdícios e sobrecargas. Se essa integração não for cuidadosamente pensada, os impactos negativos sobre as operações podem colocar em risco toda a expectativa de retorno com os novos produtos.

 

Conhecimento reutilizável: “do CPF para o CNPJ”

Outra essência do LPPD é maneira como a empresa faz a gestão do conhecimento: como é gerado, utilizado, guardado e compartilhado no decorrer do tempo. Isso significa perseguir métodos específicos para transformar o conhecimento “tácito” – que está dentro do indivíduo – em conhecimento “explícito”, acessível a todos da organização. É preciso, por exemplo, estruturar bases de dados que consigam, de fato, permitir a migração do conhecimento “do CPF para o CNPJ”.

O conhecimento gerado a partir dos ciclos anteriores de desenvolvimento precisa servir como lição aprendida para ciclos futuros. Não se pode permitir que inputs valiosos simplesmente se percam com o passar do tempo. Infelizmente, é o que acontece com alguma frequência: reinventa-se a roda. Sem conhecimento reutilizável de boa qualidade, o tempo de desenvolvimento aumenta e os custos, também.;

Com bases estruturadas, ideias e soluções podem funcionar como “supermercados” para ciclos de desenvolvimento futuros, evitando que novas iniciativas partam “do zero”. Elas podem partir de outro patamar, fazendo reuso inteligente do conhecimento acumulado e compartilhado. Isso torna os esforços de inovação e renovação muito mais ágeis e certeiros.

 

Descontruir a “Síndrome de Gabriela”

Muitas vezes, é necessário desconstruir determinadas práticas já estabelecidas, perpetuadas pela típica resistência das pessoas. A chamada “Síndrome de Gabriela”, metaforizada pela famosa canção de Dorival Caymmi para a versão novelística do romance de Jorge Amado: “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim...”.

Nesses casos, a empresa precisa promover uma ação forte e estruturada que mostre e convença as pessoas que a mudança promovida pelo LPPD, embora profunda e desconfortável – no sentido de mexer com zonas de conforto – será, mais do que necessária, inevitável. E vantajosa para todos.;

É preciso entender que o LPPD pode e deve ser aplicado em qualquer tipo de negócio, a qualquer momento. Funciona em todos os tamanhos e tipos de empresas, desde se tenha, na organização, um “sponsor” de bom nível que consiga envolver lideranças, integrar áreas funcionais, criar e sustentar as novas rotinas gerenciais necessárias.

 

LPPD é “sobrevivência”

Como diz o velho ditado, “o certo não dá errado, e o errado nunca dá certo”. Assim, toda empresa que entender que o LPPD deveria ser seu primeiro e mais importante passo descobrirá rapidamente o quanto isso evita uma das “chagas” mais recorrentes: as “melhorias evitáveis”.

Quando as companhias não começam um processo de desenvolvimento da maneira correta, tudo o que vem depois acaba sendo “retrabalho”, esforços de melhoria que buscam consertar processos que foram estruturados erroneamente em suas mais tenras origens. Se produto e processo forem desenvolvidos de maneira integrada, pouparemos muita energia com esforços de melhoria que poderiam ter sido evitados.

Além disso, os níveis de competição atual exigem respostas precisas, frutos de decisões com menores chances de erro e custos otimizados. Num mundo acelerado, em que tudo está constantemente em mudança, ter respostas rápidas e econômicas viáveis pode ser decisivo.

 Já vai longe o tempo em que as empresas lançavam um produto ou serviço e ficavam décadas colhendo os frutos da “eureca” que um dia lhes ocorrera. Hoje, sabemos, uma nova solução pode se tornar obsoleta em meses ou até menos tempo. Atualizações, adaptações e reinvenções cada vez mais frequentes tornaram-se a nova realidade.;

P.S.: Para compreender na prática os impactos do LPPD, recomendamos a leitura de recente artigo publicado pelo Lean Enterprise Institute, dos EUA, que trata da emblemática jornada da TechnipFMC, referência mundial em óleo e gás. O conteúdo aborda uma série de tópicos, incluindo a implementação da obeya no desenvolvimento de produtos.

Publicado em 12/08/2024

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Ricardo Itikawa
Head para Manufatura e Desenvolvimento de Produtos e Processos no Lean Institute Brasil

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