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Uma “IA lean”?

Flávio Battaglia e Erasto Meneses
Uma “IA lean”?
Entenda como pensar, implementar e utilizar Inteligência Artificial (IA) sob a ótica lean de gestão

O uso da Inteligência Artificial (IA) pelas empresas já é uma realidade inquestionável e inevitável no mundo todo. Nem é mais uma novidade.

Em 2022, por exemplo, a IBM encomendou e divulgou uma pesquisa que, entre outras coisas, revelou, já naquela época, que 41% das companhias brasileiras estavam implementando ativamente IA nos negócios. E que 73% dos profissionais de TI dessas organizações estavam acelerando os investimentos nessa vertente tecnológica.

Mais recentemente, em março do ano passado, outro estudo, dessa vez encomendado pela Microsoft, mostrou que 74% das micro, pequenas e médias empresas entrevistadas, de diversos setores, já usavam IA. E 90% delas disseram que pensavam em adotar ainda com mais intensidade nos próximos anos.

A questão mais importante neste momento, então, não é mais “se”, mas “como” usar a IA, digamos, de maneira inteligente, pedindo perdão pela redundância. E, principalmente, sem repetir o que ocorreu nos primórdios da Tecnologia da Informação (TI), quando se percebeu que a grande maioria dos projetos de TI simplesmente não traziam os impactos e resultados prometidos.

Neste contexto, nós do Lean Institute Brasil (LIB) estamos desenvolvendo e exercitando práticas direcionadas para apoiar a implementação da IA, mas sob a ótica lean, garantindo que ela seja usada para reduzir desperdícios, aperfeiçoar a capacidade gerencial, melhorar as condições de trabalho, apoiar a solução dos problemas e entregar mais valor para os clientes. Sem tais diretrizes, as chances de incorrermos em investimentos desnecessários (ou pouco efetivos) aumentam muito.;

O ponto de partida deve ser sempre a simplificação. O objetivo maior da IA é tornar as coisas mais fáceis, mais diretas e fluidas para funcionários e clientes. Simplificando etapas e processos, aumentamos a eficiência operacional e melhoramos a qualidade dos serviços e produtos, contribuindo de maneira mais efetiva para os objetivos estratégicos da organização.

Considerando a simplificação como alvo fundamental para o uso da IA, elencamos abaixo conceitos e práticas lean que podem nos inspirar diante do desafio de usar a tecnologia certa, no lugar certo, na hora certa. Uma “IA lean”.

 

Valor para o cliente

Para que seja realmente lean, todo projeto de IA, antes mesmo de qualquer produção ou implementação digital, deveria começar com uma clara e ampla compreensão sobre como a IA que se está projetando poderá, concretamente, criar valor para os clientes.

Esse fundamento lean também precisa embasar de maneira integral todo e qualquer investimentos em IA. Utilizar tecnologia sem entender, de maneira transparente, qual é o propósito que se tem e qual é o impacto que se quer produzir pode levar a gastos desnecessários, ou seja, mais, maiores e novos desperdícios, além de frustrações com resultados não atingidos. Precisamos ser capazes de manter a perspectiva do “cliente final” como fiel da balança.

Por outro lado, se conseguirmos, além do exposto anteriormente, utilizar a inteligência artificial para capturar comportamentos de consumo, de “padrões de cliques”, ou seja, a experiência do usuário, isso poderia se converter em feedbacks relevantes aos líderes e liderados para, por exemplo, fazer ajustes necessários em produtos e serviços, além de gerar inovações mais relevantes.

 

Eliminação de desperdícios

O uso da IA pode ter um tremendo impacto no redesenho dos processos e em como o trabalho humano precisa ser organizado. Isso significa direcionar esforços para que toda e qualquer etapa desnecessária no nível do processo seja eliminada ou minimizada, direcionando a capacidade humana para as atividades realmente importantes.

Um exemplo clássico, com o qual nos deparamos todos os dias dentro das empresas, são as redundâncias. Etapas e atividades são repetidas de diversas maneiras, por várias pessoas, em departamentos distintos, sem mesmo que se perceba. Trata-se aí de uma excelente oportunidade para se mapear e utilizar a IA para automatizar o trabalho, visando eliminar sobreposições que somente nos roubam tempo e energia.;

Nesses casos, pode-se lançar mão da chamada “Automatização de Processos Robóticos (RPA)”, que vem sendo, cada vez mais, utilizada para automatizar atividades cíclicas. No entanto, é preciso, novamente, aplicar a visão lean diante dos desafios de automação. Antes de qualquer intervenção envolvendo tecnologia, deve-se mapear cuidadosamente os fluxos de valor para que os pontos críticos sejam evidenciados.

 

Identificação de erros, falhas e defeitos

Talvez uma das contribuições mais promissoras da IA seja a capacidade em nos apoiar na identificação de anormalidades. Um dos conceitos mais poderosos do modelo lean é a busca incessante pela identificação e exposição dos problemas. As próprias origens do lean nos remetem a tal conceito.

O famoso “pilar jidoka”, inspiração que a Toyota trouxe da fábrica de teares e incorporou profundamente nas práticas da produção de veículos, nos remete essencialmente à capacidade que máquinas e equipamentos deveriam ter para que fossem capazes de julgar “autonomamente” se o produto tem ou não qualidade.

Na era digital, com apoio da IA, deveríamos ser capazes de alcançar novos patamares de qualidade, com custos decrescentes. Se nossos sistemas, máquinas e equipamentos estiverem projetados para nos ajudarem a distinguir erros, falhas e defeitos, abriremos espaço para que a velocidade e a efetividade das melhorias sejam alavancadas tremendamente. Por exemplo:

Na detecção e diagnóstico de anomalias: A IA pode ser programada para monitorar constantemente os dados de produção ou serviço em tempo real, detectando padrões que desviam do normal. Algoritmos de aprendizado de máquina podem identificar falhas, defeitos ou problemas de qualidade antes que eles se tornem mais graves. Uma vez detectado o problema, o sistema pode pausar automaticamente a operação em linha, seguindo o “pilar jidoka”.

Na análise preditiva: Utilizando grandes conjuntos de dados históricos, a IA pode prever falhas potenciais em equipamentos ou processos. Essas previsões ajudam na manutenção preditiva, que se alinha ao “jidoka”, ao evitar interrupções não planejadas e defeitos de qualidade, otimizando o tempo de atividade do equipamento e a eficiência do processo. A Indústria 4.0 utiliza esses mecanismos através de sensores RFID e IoT, para capturar e coletar os dados, e fazem uso do Deep Learning, para alimentar a IA com a intenção de fazer análises preditivas. Por exemplo, no caso dos carros autônomos de Classe 5.

Na visão computacional: Em linhas de montagem ou no controle de qualidade, a IA equipada com visão computacional (reconhecimento por imagem) pode inspecionar produtos em velocidades muito maiores e com maior precisão do que os humanos. Isso não só melhora a detecção de defeitos, mas também permite uma intervenção rápida, conforme princípios do jidoka. Caso muito conhecido na agroindústria é o de rastreamento de cultivos por drones equipados com câmeras e mecanismos de IA, por reconhecimento de imagem, para enxergar pragas, doenças e outros problemas de produção.

Na automação responsiva: Sistemas equipados com IA podem ser programados para tomar decisões automáticas, baseadas nas informações coletadas e analisadas. Isso inclui não apenas a parada do sistema quando necessário, mas também sugestões de ajustes em processos ou configurações de máquinas e equipamentos para prevenir a recorrência de defeitos. Nessa linha, temos como exemplo o famoso delivery em produção de funcionalidades de um sistema ou produto digital que, quando aprimorado com IA, pode ser configurado para implementar planos de contingência como o roll-back, em caso de detecção de erros na implementação, para proteger a última versão funcional da solução.

Em feedback e melhoria contínua: A IA pode ajudar a coletar e analisar feedback de processos e produtos de forma contínua, facilitando a melhoria. Por exemplo, se um problema específico é frequentemente detectado, a IA pode analisar as causas raízes e sugerir mudanças no processo ou no design do produto. Isso é muito comum nos canais de reprodução de streaming, como a Netflix, onde continuamente a IA faz leitura de padrões de comportamentos e visualizações, para oferecer a melhor experiência do usuário, trazendo conteúdo compatível com cada indivíduo.

Na integração com sistemas corporativos: Ao conectar a IA com sistemas de gestão empresarial (ERP, por exemplo), é possível otimizar a resposta a problemas detectados. A IA pode acionar automaticamente ordens de serviço, ajustar cadeias de suprimentos ou realinhar agendamentos de produção. Atualmente, a declaração de padrões no ambiente digital é potencializada pela IA, dado que a partir desses padrões se podem estabelecer precondições e requisitos para manter nivelado a entrega de valor na rotina diária.

 

Velocidade da melhoria e solução de problemas

Até a IA, fazer melhorias era uma tarefa exclusivamente humana. Mas talvez estejamos diante de profundas mudanças também nesse aspecto. Como vimos nos tópicos acima, cada vez mais dispomos de meios “autônomos”, capazes de identificar anomalias e sinalizar a existência de problemas em tempo real. Isso nos permite acelerar dramaticamente o tempo de resposta a problemas, aumentando a precisão das intervenções direcionadas a melhoria dos processos e da organização do trabalho.

Revelar e resolver problemas continua sendo uma capacidade humana fundamental e talvez nunca deixe de ser. Afinal de contas, ainda são pessoas reais que detêm a responsabilidade pelas decisões e o olhar crítico para o desempenho e para as necessidades do negócio. No entanto, uma “IA lean” pode ajudar muito nesse desafio e de uma maneira nunca imaginada.

Esse talvez seja um possível “estado ideal” da dinâmica de melhoria, tendo a IA como grande aliada na identificação das lacunas de desempenho em tempo real, apontando caminhos e alternativas de contramedidas. Que ela se torne responsiva e desenvolva a capacidade de autocorrigir as inconsistências no nível do processo. Não só analisando e fornecendo dados e informações complexas, mas também “propondo” e “fazendo” as transformações necessárias.

 

Fazer a pergunta certa

Atualmente, a maioria das interações entre humanos e IA se dá através dos chamados “prompts”, que são guiados por comandos que enviamos aos robôs com nossas demandas específicas. Nesse contexto, é fundamental, por exemplo, entender como fazer a “pergunta certa” às plataformas de IA – como ChatGPT, Gemini, Copilot e tantas outras.

É preciso compreender como pensar e formatar “prompts lean” que vão extrair e analisar informações de maneira efetiva, além de oferecer alternativas viáveis para se iniciar, desenvolver e potencializar a solução de um determinado problema ou desafio. Sem a pergunta certa, teremos respostas imprecisas e que podem nos levar a decisões equivocadas.

 Isso envolve, inclusive, entender com profundidade as necessidades dos clientes e seus respectivos pontos de “dor”. Consequentemente, identificar os elementos estratégicos, nos quais a IA pode trazer melhorias significativas. Então, formular perguntas à IA a partir de prompts específicos, claros e diretos. E avaliar, com base nas respostas, como podemos refinar e alinhar as práticas gerenciais contribuindo para os objetivos estratégicos.

 

Uma “IA lean”?

Discussões profundas numa série de grandes encontros mundiais recentes sobre o tema – como Brazil at Silicon Valley, SXSW e South Summit – nos dão pistas do enorme potencial de uma “IA lean" para transformar, de maneira nunca imaginada, a gestão das empresas, a evolução dos mercados e das relações com os clientes.

Elas podem, por exemplo, personalizar as experiências de usuários, prever necessidades futuras dos mercados e otimizar a entrega de serviços. Além disso, vão certamente gerar novos modelos de negócios, criar vantagens competitivas através da inovação contínua e da adaptação rápida às mudanças sociais. Conseguirão traduzir padrões de comportamento, para alinhar, ainda mais, demandas específicas, configurações organizacionais e desenvolvimento das pessoas, fortalecendo os ecossistemas econômicos.

Nesse contexto, é provável que, num futuro próximo, vejamos não apenas um "sistema lean", mas um "sistema IA Lean", que vai integrar gestão e inteligência artificial como partes essenciais e indivisíveis da operação e da gestão de uma empresa.

As bases disso incluiriam uma integração profunda de IA com os processos e o trabalho humano, numa contínua otimização e aprendizado. Também, gerar estruturas adaptativas que permitam respostas rápidas às mudanças, mantendo o foco na criação de valor. E fortalecer um uso de dados e análises cada vez mais avançadas para suportar decisões estratégicas e operacionais.

O futuro chegou. As empresas precisam entender como pensar e executar a IA em bases lean. Não é algo que ainda vai acontecer. Talvez já estejamos diante de grandes alavancas potenciais para acelerarmos o progresso.

Publicado em 09/05/2024

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Erasto Meneses
Head de Lean Digital Transformation no Lean Institute Brasil.

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