Integração, colaboração, sinergia, competitividade, visibilidade… são muitas as palavras utilizadas para descrever os atributos desejados para uma cadeia de suprimentos. Porém, mais que apresentar ou idealizar o fluxo a partir de palavras-chave de efeito, é preciso descrever o como, ou seja, o modelo ou abordagem concreta e já experimentada para conduzir o processo de melhoria no Supply Chain. E de ponta a ponta (E2E, end to end).
A visão de Supply Chain end to end, segundo a perspectiva de entrega de valor da gestão Lean, é uma abordagem prática que visa integrar eficientemente toda a cadeia de suprimentos, da aquisição de materiais à entrega ao cliente. Isso engloba todas as etapas envolvidas (compras, transporte, planejamento, armazenagem, entrega etc.) de forma convergente para um objetivo comum: a otimização do todo, e não das partes.
Por Lean Supply Chain, entende-se o conjunto de fluxos diretos, indiretos e de apoio à criação de valor, desde a origem ao destino, e reversos, desenhados e articulados com vistas à entrega desse valor, sem desperdícios, focando na resolução e prevenção de problemas por meio das pessoas, e com vistas a atingir alta performance.
A abordagem Lean Supply Chain, por seu caráter holístico, valoriza não tão somente os fluxos físicos, mas engloba os fluxos de informação e financeiro. Em outras palavras, tudo o que é relevante sobre o fluxo de provisão (ou seja, que atende a um consumo) é considerado e analisado sobre o prisma de valor do cliente. Aqui, surgem as descobertas de desperdícios, problemas e retrabalhos muitas vezes ocultos, como tesouros aguardando serem descobertos.
Para condução de tal abordagem na prática, o Lean Institute Brasil estruturou o framework Lean Supply Chain no qual o end to end do fluxo de valor na cadeia de suprimentos é tratado por ciclos. O framework se baseia no modelo SCOR (Supply Chain Operations Reference), criado pelo Supply Chain Council (SCC), sendo integrado à prática do pensamento Lean pela visão da entrega de valor ao cliente, com eliminação de desperdícios, e resolvendo problemas com as pessoas.
Figura 1 — Framework Lean Supply Chain
A Figura 1 apresenta o framework Lean Supply Chain e representa os ciclos constitutivos (exemplo: estratégia, planejamento, operações etc.). É visível a conjuntura não apenas interna da organização, mas também de níveis de fornecedores e de clientes.
Nesse framework, os elos e seus respectivos ciclos de trabalho são considerados em suas particularidades sem perder a integração com a estratégia, como mostra a chave na parte superior da Figura 1. A estratégia é o ciclo superior integrando com a realidade de todas as informa- ções sobre a demanda dos clientes, os níveis de estoque dos produtos, as capacidades de produção dos fornecedores, entre outros fatores.
O recorte da estratégia: um diferencial para a transformação lean
Quando tratamos de novos negócios — aqueles que estão sendo planejados para futura operação —, a integração dos elos da cadeia na constituição de um fluxo end to end se beneficia sobremaneira da abordagem Lean. Esta direciona o design dos fluxos e arquitetura organizacional para concepção de fluxos de trabalho sem desperdícios e a tomada de decisão baseada em evidências, graças ao compartilhamento de dados entre as partes do fluxo que nasce já na concepção estratégica.
Todavia, a maioria das organizações já possui sua cadeia formada e, de alguma forma, busca operacionalizá-la com uma estratégia corporativa. Nesse caso, alinhar os esforços es- tratégicos em direção às necessidades da cadeia de suprimentos significa a capacidade de identificar e priorizar frentes de atuação para otimização do fluxo end to end. Isso representa a capacidade de buscar na cadeia atual da empresa, extensa e complexa, quais as partes que precisam ser destacadas e priorizadas, sem, contudo, afetar a operação do negócio, ao contrário, já ir adicionando melhorias incrementais. Trata-se de realizar um recorte estratégico no negócio. Um ato cirúrgico curativo— diríamos para usar uma metáfora médica — em que nosso paciente é a organização e o Lean Supply Chain é o tratamento.
Para auxiliar neste caminho, associa-se à Figura 1 o Lean Transformation Framework (LTF) (Lean Institute Brasil, 2015). O LTF, desenvolvido a partir de décadas de trabalho com organizações e indivíduos em busca da transformação, é uma estrutura heurística utilizada como um guia para experimentação, solução de problemas e aprendizado para ajudar as organizações a se tornarem empresas Lean.
No contexto do Supply Chain, a aplicação do LTF se torna possível por meio da reflexão e avaliação dos ciclos na Figura 1 à luz de cinco dimensões. Essas cinco dimensões estão associadas à constituição geral do LTF e, uma vez orientadas ao Supply Chain, permitem a condução das reflexões e avaliações por meio de perguntas como:
- Propósito: Quais são as principais dificuldades em se fazer permear a estratégia de forma clara nos diversos níveis da cadeia de suprimentos? Como traduzir o norte verdadeiro (objetivo comum) para as distintas áreas de negócio e diferentes empresas? O que significa o propósito muitas vezes oculto nas atividades do dia a dia? Como as atividades rotineiras se ligam às necessidades estratégicas da cadeia end to end?
- Processo: Quais as principais frentes de atuação para cobrir as lacunas e problemas ao longo da cadeia de suprimentos? Quais são os focos de melhoria nos fluxos de trabalho e informações? Como projetar o fluxo de valor para apoiar e possibilitar a melhoria contínua do trabalho?
- Capacidades humanas: Em quais habilidades ou conhecimentos específicos a equipe precisa se desenvolver para atingir o objetivo comum? Como está o entendimento das ferramentas e métodos utilizados no dia a dia? Como as pessoas se envolvem em absorver e aderir ao objetivo comum, rumo ao futuro?
- Liderança e sistema de gestão: Quais são as mudanças necessárias da liderança em relação ao que se espera para conduzir de maneira eficaz a transformação guiada pela estratégia? Quais as rotinas e frequências dos encontros gerenciais? Como são expostos e tratados os problemas? Como a performance é acompanhada ao longo de toda a cadeia de suprimentos?
- Mentalidade básica: Quais são os pressupostos fundamentais que permeiam o Supply Chain? A “conversa de cafezinho” está alinhada (ou não) à estratégia e objetivo comum? Quais os ruídos ou lacunas que precisam ser supridas para que a cultura de eliminar desperdícios e resolver problemas diariamente seja entendida e adotada por todos, em todos os níveis?
A partir dessas perguntas, é possível identificar os principais pontos de entraves na busca pela definição da estratégia do Supply Chain e sua execução. Alinhar os esforços e canalizar a energia para as prioridades reais faz com que todos saibam “como” e “por que” seguir em tal direção.
Figura 2 — Ciclos identificados para frentes de melhoria em uma empresa de insumos agrícolas
Estudo de caso: uma distribuidora de insumos agrícolas
Uma aplicação da abordagem Lean Supply Chain ocorreu em uma distribuidora de insumos agrícolas no Brasil. Foi realizado um diagnóstico inicial no Gemba (visita ao local real das operações) e, a partir de perguntas associadas ao LTF (conforme descrito acima), foram conduzidas entrevistas com gestores e equipe envolvida diretamente nos processos.
A partir do diagnóstico, foram identificados os associados ao framework Lean Supply Chain a seremconsiderados para frentes de melhoria. A escolha se deu, portanto, em função do recorte estratégico, ou seja, a partir da identificação dos pontos fracos não articulados da estratégia e operação da cadeia de suprimentos.
Em outras palavras, ao investigar quais as principais frentes de atuação para cobrir as lacunas e problemas ao longo da cadeia de suprimentos, relacionou-se a visão de processos e sistema de gestão (respectivamente itens 2 e 4 da seção anterior) com o propósito (item 1). Assim, foram elicitadas as principais dificuldades em se fazer permear a estratégia de forma clara nos diversos níveis da cadeia de suprimentos.
A título de exemplificação: havia um propósito claro de integração e rastreabilidade total do fluxo entre as partes da cadeia, inclusive em departamentos internos — isso como forma de evitar as paradas de fluxo e retrabalhos. Tal propósito não se realizava, por exemplo, no processo operacional com fornecedores, onde entregas eram sistematicamente realizadas com falhas e falta de qualidade. Essa abordagem prática e direcionada a conectar o propósito organizacional com a operação real só foi possível de ser realizada porque envolveu um método de diagnóstico apropriado. Tal método consistiu em visita ao Gemba (local real das operações) auxiliado por um assessment desenvolvido pelo Lean Institute Brasil para consolidar de forma objetiva as observações, permitindo sistematizá-las com base no modelo da Figura 1.
Dessa forma, a abordagem de atuação seria subdividida em cinco ciclos, representados na Figura 2, sendo:
- Pedido perfeito junto aos fornecedores;
- Logística inbound perfeita;
- Processamento interno otimizado;
- Logística outbound perfeita;
- Pedido perfeito junto aos clientes.
Cada um desses ciclos apresenta diversos departamentos envolvidos que foram identificados e alinhados por meio de uma técnica Lean denominada fluxo de valor da cadeia de suprimentos.
Assim, em cada um desses ciclos estabelecidos, avaliações de problemas e desperdícios foram conduzidas, bem como capacitação das equipes, gestores e alinhamento para a busca do objetivo comum. Em seguida, foi desenhado um fluxo de valor integrado, tendo como objetivo promover a rastreabilidade dos produtos desde a origem até a entrega final ao cliente. A Figura 3 apresenta um excerto deste mapeamento, sendo um recorte do ciclo de “Pedido perfeito junto aos fornecedores”.
No Ciclo 1 (pedidos perfeitos junto aos fornecedores), a redefinição do fluxo de valor (mapa de estado futuro) produziu uma redução de lead time (tempo total de execução do fluxo) em 65%. Os índices de retrabalho e defeitos (medidos pelo indicador de “correto e completo”) aumentaram de 68% para 85%. “Correto e Completo” é um indicador exclusivo da abordagem Lean no Supply Chain. O índice de 65%, por exemplo, significava que de todo trabalho que fluía entre as atividades do Ciclo 1, 35% desse trabalho apresentava imprecisão em alguma das atividades, resultando na necessidade de parar o fluxo de trabalho, buscando corrigir ou completar a informação. Após as melhorias, esse índice subiu para 85% (reduzindo para 15% as imprecisões).
No Ciclo 2 (logística inbound), a redução de lead time foi da ordem de 90%, enquanto o correto e completo saltou de 52% para 84%. Reflexo da identificação e remoção de desperdícios, tais como tempo de espera significativos (exemplo: comprador aguardando) e diversas atividades que não se configuravam como agregadoras de valor. Além disso, as rotinas de obtenção de informações foram padronizadas e asseguradas na integralidade da execução.
Por outro lado, o indicador de “Correto e Completo” estava ainda mais crítico no Ciclo 4 (logística outbound): resultando em 41%. Com medidas de kaizen, foi possível alcançar um estado futuro de 86%. Kaizen são pequenas e importantes melhorias no trato do fluxo de informação e de materiais, em cujo caso analisado focaram na padronização e identificação de dados íntegros, e mudança no layout da operação de expedição.
Resultados semelhantes também foram visualizados nos outros ciclos, nos quais o método de identificar desperdícios e realizar kaizens per- mitiu de forma análoga à melhoria global do fluxo de valor.
Figura 3 — Excerto de mapeamento de fluxo de valor - Estado Futuro. Ciclo de pedido perfeito junto aos fornecedores
Resultado global da abordagem
A definição do propósito derivou do recorte estratégico realizado pelo método Lean nas especificidades do negócio. Atendendo insumos para o ramo agrícola, é fundamental prezar pela acuracidade nas programações, entrega, previsibilidade e redução estoques obsoletos.
Figura 4 — Resultados típicos da prática do pensamento Lean
Para exemplificação, se um cliente relatar alguma não conformidade com um determinado produto químico, a distribuidora agora passou a rastrear rapidamente a origem do problema e tomar medidas para corrigir a situação com agilidade. Assim, efeitos prejudiciais ao negócio e ao meio ambiente são evitados, buscando manter a satisfação do cliente. Em resumo, para promover a rastreabilidade completa dos produtos conforme o propósito identificado, o fluxo de valor integrado foi implementado para conectar e integrar os seus cinco ciclos constitutivos (representados na Figura 2). Chamado de “sistema integrado de gestão de suprimentos”, as funções de logística inbound, processamentos internos, expedição e gestão comercial foram conectadas e a visão compartilhada de valor foi difundida nesses elos da cadeia de suprimentos, gerando mais colaboração e sinergia no todo. A partir da visão estendida, integrada e colaborativa, foi possível alcançar níveis mais altos de precisão na previsão (para efeito de preparação e planejamento da cadeia), bem como otimizar a programação da operação (a partir de pedidos firmes). Ainda, foram delineadas rotas mais eficientes para recebimento e a entrega dos produtos. Como consequência, conseguiu-se reduzir os níveis de estoque e foram alcançadas melhorias substanciais nos níveis de serviço de entregas junto ao cliente final — o que permitiu expansão no market share.
Disseminação e lições aprendidas
O Lean Supply Chain em prática pode levar as organizações a novos patamares de performance operacional global. Os saltos de melhorias permitem atingir objetivos mais am- plos, como expansão de portfólio, busca de novos negócios, aquisições, e novas parcerias. A visão end to end acomoda o ecossistema organizacional com distintas partes interessadas convergidas para um consenso estratégico que otimize o todo e potencialize a entrega de valor total ao cliente.
Nesse sentido, a empresa distribuidora de insumos agrícolas definiu a continuidade dos trabalhos de melhoria e sua expansão para novas frentes (exemplo: fornecedores Tier 2). A expansão é potencializada enquanto os resultados são disseminados e novos participantes da cadeia estendida vão aderindo ao fluxo de valor do Supply Chain melhorado.
Na mesma medida em que expande a visão, o modelo Lean Supply Chain também permite considerar a sustentabilidade e a responsabilidade social no end to end. Isso inclui a adoção de práticas sustentáveis em relação ao meio ambiente e a garan- tia de condições justas de trabalho para os envolvidos no fluxo e aos demais atores participantes da cadeia estendida. Isso se dá a partir da mesma ótica prática de redução de desperdícios, maximização de valor e otimização do todo.
A adoção dessa abordagem tem trazido inúmeros benefícios para as empresas — dentre eles a redução de custos, o aumento da eficiência e a melhoria da qualidade do produto e ao atendimento ao cliente, seja no âmbito interno ou externo. Alguns indicadores gerais, percebidos e coletados a partir de empresas que já iniciaram a transformação Lean e exemplificados neste artigo pelo caso descrito, são apresentados na Figura 4.
O futuro dos negócios é dependente da entrega de resultados — que por sua vez passa e decorre da cadeia de suprimentos. Desenvolver e melhorar o fluxo de valor estendido no Supply Chain é uma questão de sobrevivência. A abordagem Lean Supply Chain é um caminho experimentado e consolidado para permitir a transformação e atingir novos patamares de resultado global no end to end.