LOGÍSTICA E CADEIA DE SUPRIMENTOS

Supply Chain Management: Novas fronteiras em um caminho de incertezas e complexidade

Daniel Felipe de Oliveira
Supply Chain Management: Novas fronteiras em um caminho de incertezas e complexidade
O desafio crescente em estabilizar a cadência no fluxo de valor torna pertinente discutirmos as tendências e os novos movimentos na gestão da cadeia de suprimentos.

Não há quem pinte o retrato de uma cadeia de suprimentos quando estoura. Se velhos problemas (baixa acuracidade de estoque, longos lead times, rupturas, baixa confiabilidade de entrega) já rondavam o dia a dia, e muitas vezes o sono dos profissionais da cadeia de abastecimento, os últimos 30 meses demonstraram como novas e imprevisíveis fontes de instabilidade podem afetar diretamente os fluxos de materiais e informações. A pandemia da Covid-19, o navio EverGreen encalhado no Canal de Suez e a guerra da Ucrânia são exemplos de como as mudanças nos cenários globais (com efeitos locais) estão mais velozes e incertas. O cenário VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity e Ambiguity) dá sinais que chegou sem passagem de volta.

O contexto caótico reforça a necessidade das empresas se manterem competitivas. Enxugar operações (reduzir desperdícios), garantir qualidade na origem, gerar cadência e aumentar velocidade e flexibilidade passam a ser direcionadores estratégicos para a sustentabilidade dos negócios no mundo VUCA. A prática do pensamento lean, que aborda fundamentalmente esses direcionadores, toma posição de destaque em assumir nas organizações um papel de norte verdadeiro como bússola para um caminho de incertezas.

Um novo cenário:

Em paralelo, para qualquer negócio, as exigências do cliente continuam em evolução. O encantamento do cliente passa a ser uma necessidade e amplifica trade-offs entre custo-flexibilidade-risco, o que aumenta a complexidade para tomada de decisões. As organizações, por sua parte, passam a coordenar mais processos fisicamente distantes e envolvem ciclos de desenvolvimento de produtos cada vez menores. O omnichannel (estratégia de conteúdo que integra diferentes canais e mídias digitais para estreitar a relação com o cliente) continua em ampla expansão, o que reforça e acompanha o crescimento das vendas online. No e-commerce, o prazo de entrega passa a ser critério eliminatório, e a demanda de produtos se mostra com maior incerteza e variabilidade (o leite condensado foi o produto mais vendido pelo Mercado Livre em 2021). Se a estabilidade dos fluxos e o nivelamento de pedidos é uma premissa para o bom funcionamento de uma cadeia de suprimentos, o desafio dos profissionais logísticos é continuamente intensificado.

No last mile (último trecho da mercadoria para entrega ao cliente), tudo pode acontecer, até mesmo perder o cliente. O next day delivery é sistematicamente substituído pelo same day delivery. Centros de Distribuição já se estruturam para operar 7 dias por semana, 24 horas por dia. Além da disseminação do order fulfillment nos armazéns já existentes, novos canais, mecanismos de entrega e estratégias de capilaridade urbana estão em plena experimentação e consolidação para aumento da flexibilidade (por exemplo, mais pontos de estoque de itens de giro, entrega por drone, uso de locker…). Contudo, isso nem sempre acontece sem conflito entre diferentes segmentos de negócio (por exemplo, quando a operação logística é compartilhada entre venda física e e-commerce ou quando há concorrência no depósito entre a entrega ou a retirada de produtos).

Ainda há o dilema dos itens de baixo giro. Sejam “elefantes brancos” que desembocaram no estoque, “vacas sagradas” que alguém acredita que ainda serão vendidas ou outra espécie do zoológico dos slow movers, demandam decisão de destinação ou onde serão estocados. É comum encontrar gestores defendendo o saneamento do estoque, sem, no entanto, validar ações concretas de disposição dos itens de baixo giro. O impasse é intensificado por um discurso crescente sobre a necessidade de aumento da produtividade da operação logística. Contudo, a discussão não vem de hoje.

Evolução tecnológica:

Visibilidade e integração

Se a evolução do supply chain nos últimos 100 anos acompanhou o desenvolvimento de novas tecnologias, conceitos e ferramentas, novos aparatos tecnológicos serão incorporados e desenvolvidos pelo e para o próprio supply chain. São exemplos de tecnologia em expansão na operação logística voice picking, veículos autônomos (na logística interna e externa), a “uberização” dos recursos logísticos e os óculos de realidade aumentada, que abrem precedentes para a imersão da logística no Metaverso. A incorporação do mundo virtual nas operações reais traz incertezas, porém estará cada vez mais em experimentação e dá mostras de que o modelo phygital é uma rota traçada para novos ecossistemas logísticos e sua inserção na Sociedade 5.0.

Tais ecossistemas também trazem uma característica fundamental de integração entre seus elementos constitutivos, o que remonta à conectividade e intensificação da comunicação. O nemawashi (processo de conseguir aceitação e avaliação de ideias) e o yokoten (desdobramento horizontal de conceitos) são práticas lean de promoção de integração e comunicação. Nesse sentido, sistemas de CRM/SRM (Customer/Supplier Relationship Management) podem se integrar, juntamente de outros elementos de monitoramento da cadeia logística e da operação interna, com uma perspectiva de Torre de Controle da cadeia de suprimentos. Um cuidado importante está nos objetivos de se criar controle: é preciso que traga agilidade para detecção de problemas e promova aprendizado. Instrumentalizar controle apenas para gerar relatórios e indicadores tardios (ex. em escala mensal) pode acabar por não imprimir resiliência na cadeia como um todo.

Além da possibilidade de colaborar na versatilidade de adaptação, um elemento gerencial de ampliação da visibilidade pode ser conseguido por recursos de inteligência e processamento de informação. Por exemplo, big-data e algoritmos para previsão de demanda (conceito de antecipação logística), blockchain como protocolo de confiança, o que amplia o escopo e participação de fintechs na cadeia de valor, e algoritmo genético para encontrar soluções em problemas de busca e otimização. A conexão dessas tecnologias, do sensoriamento e da inteligência artificial, da internet das coisas e de outras inovações indicam a possibilidade de construção de super redes logísticas e da efetivação da Logística 4.0.

Progressos tecnológicos ainda indicam a emergência de novos modelos de negócio e rompimento de paradigmas. A evolução da manufatura aditiva e da ciência dos materiais pode permitir que organizações comercializem o projeto do produto para impressão 3D na residência do cliente. Seria um modelo de cadeia mais livre de chances de desperdícios, mas também incerto do ponto de vista do caminho (com possíveis obstáculos e imprevistos) até essa condição alvo. Um horizonte lean perfeito (e utópico) implicaria em uma operação livre de todos os desperdícios: o cliente imagina, e o produto se materializa imediatamente na sua frente.

Há quem defenda que tais avanços tecnológicos permitirão e provocarão por si só uma melhoria da performance na cadeia de suprimentos. Se, por um lado, novas ferramentas e tecnologias são de fato capazes de gerar produtividade, por outro, sempre se deve enxergar a cadeia como um todo. A eficiência da cadeia é uma jornada de ponta a ponta, onde a otimização está no todo. Se não olhadas sistematicamente a partir do fluxo de valor, melhorias isoladas correm o risco de tornar um ponto específico da cadeia (por exemplo, um armazém) como um único elo com produtividade em meio a uma rede de ruídos, problemas e instabilidade (por exemplo, fontes de demanda e sistema de gestão).

Mais que aplicar as novas tecnologias ou seguir certas tendências que podem até ser entendidas como modismos, o fio de Ariadne para adoção de tecnologias em meio ao labirinto da incerteza e complexidade está em enxergar o valor para o cliente. É por meio do prisma do fluxo de valor que a visão sistêmica da cadeia pode atingir seu pleno potencial, permitindo identificar, em suma, quais atividades geram valor ou desperdício e, com isso, trazer aprendizados. A visão sistêmica com foco no cliente é o que permite prosseguir no entendimento dos principais problemas e causas correntes de instabilidade na cadeia, a fim de que sejam tratados primeiro (com automação ou não) e girar a roda da melhoria contínua. Nesse sentido, as Torres de Controle da cadeia de suprimentos são instrumentos bem-vindos, desde que estejam alinhadas ao propósito de gerar visão sistêmica e integração para aumento da visibilidade e resiliência da cadeia de valor.

Cadeia de suprimentos:

Palco da agregação de valor

No caminho da melhoria contínua, o grande benefício da adoção tecnológica está na redução do lead time para tratamento dos problemas. Seja por permitir novas experimentações (errar rápido, corrigir rápido) ou acelerar e automatizar o método de solução de problemas, a função tecnológica está associada a reduzir esse intervalo de tempo. Em outras palavras, o ganho da organização está em poder reduzir os tempos de percepção, análise, decisão e correção de cada problema. A capacidade de permitir visibilidade dos problemas e suas causas, bem como a possibilidade de antecipação de informações e predição de eventos, está contida no conceito do lead time para tratamento dos problemas.

Uma alternativa à possível incapacidade de visibilidade ou antecipação de eventos imprevisíveis é o aumento da flexibilidade e capacidade nos processos da cadeia de suprimentos, inclusive na manufatura. A curva de trade-off do custo (estoque ou fabricação) e da flexibilidade se acentua na medida em que as cadeias procuram se manter competitivas, mas resguardando a premissa do encantamento do cliente, que pode envolver o “same day delivery”. Considerando que nem todas as variações de demanda serão possíveis de serem antevistas (uma vez que ocorram), a capacidade da cadeia em ser flexível pode ser o diferencial para o atendimento do cliente.

A sutileza na capacidade de avaliar alternativas de decisão no páreo das curvas de trade-offs sugere o elemento fundamental na perspectiva de uma cadeia de suprimentos de sucesso: as pessoas. Muito além das capacidades de inteligência artificial, o potencial criativo e inovador, com respeito pelas pessoas, é o que nos torna humanos. A pandemia proporcionou aprendizados ímpares no que concerne ao respeito pelas pessoas: ao lidar com a vida e a morte, a responsabilidade das decisões nas cadeias de suprimento remonta ao impacto nos indivíduos. Em meio ao contexto de incertezas e complexidade, os profissionais da cadeia de suprimentos estão se demonstrando como verdadeiros heróis. Enquanto dedicam boa parte de seu tempo em apagar “incêndios”, são cobrados por melhorias ou metas nas quais não tiveram participação na construção. É preciso entender e revigorar a visão das lideranças pelo prisma da cadeia de suprimentos, sempre com respeito às pessoas.

Decisões organizacionais invariavelmente geram implicações na cadeia de suprimentos. Mesmo que uma decisão não gere em si um desperdício em função da cadeia de valor em que foi gerada (por exemplo, em marketing ou em desenvolvimento de produto), certamente valor ou desperdício serão gerados na cadeia de suprimentos.

Por onde começar?

O Maior impacto para o Cliente

É a cadeia de suprimentos que vai servir como o local das decisões que impactam o cliente. É lá que nosso foco precisa estar.

É urgente que os sistemas de decisão, principalmente nos altos níveis de liderança, que muitas vezes se encontram distantes do gemba (local da operação), compreendam sistematicamente os efeitos na cadeia de suprimentos a partir de cada deliberação (ocorrida em vendas, marketing, P&D etc.) e o que pode gerar de desperdícios e problemas no curto, médio ou longo prazo. Dentre eles estão o aumento de estoque, o efeito chicote, o aumento da variabilidade de processo, a instabilidade operacional, o aumento de trabalho não padronizado, o aumento de horas extras e os problemas na moral das equipes. A boa notícia é que há uma proposta concreta para abarcar as pessoas e os processos frente aos desafios.

Não se esquecer do básico:

De volta aos fundamentos

O respeito pelas pessoas e a visão sistêmica da cadeia com ótica no fluxo de valor associam-se na abordagem do pensamento lean. O lean ainda agrega metodologias (por exemplo, hoshin, A3 e GD – Gerenciamento Diário) capazes de guiar o comportamento da liderança na tomada de decisão orientada a um propósito e com engajamento e participação das pessoas, o que configura um meio para distinguir as distintas curvas de trade-offs e abordá-las de modo complementar. A proposta de assumir a gestão lean da cadeia de suprimentos torna o caminho organizacional orientado a um propósito comum, que enxerga o próximo passo em ciclos curtos de interação e permite à equipe se manter no rumo certo, tendo como única certeza o fato de que surgirão obstáculos, imprevistos, problemas e anomalias.

Em uma perspectiva de organizações que, ao pautar a prioridade da experiência do cliente, decidem por trazer a si as responsabilidades end-to-end na cadeia (evitando, por exemplo, o “vendido e entregue pela empresa x”), o lean passa a ter uma expressão ainda mais significativa. Além da cadeia interna (door-to-door), o end-to-end implica de forma mais eloquente a necessidade de visão sistêmica para a tomada de decisão. Isso não inibe iniciativas de terceirização ou quarteirização, que podem ser inclusive necessárias para viabilizar a ampliação de operações. Contudo, é preciso que o propósito comum seja compartilhado e difundido, de forma que os parceiros estejam integrados como uma única equipe a agregar valor para o cliente.

Cabe ainda destacar a importância em considerar objetivamente o papel da cadeia de suprimentos na sustentabilidade. Além da perspectiva econômica, que envolve o TCO (Total Cost of Ownership), o cuidado com aspectos e impactos ambientais ao longo do ciclo de vida do produto é reforçado no desenvolvimento da Logística Reversa e na construção de modelos de Economia Circular. Toma também cada vez mais relevância a consideração de impacto social a todas as partes interessadas envolvidas na cadeia de valor: clientes, funcionários, comunidade local, sociedade em geral etc. Destaca-se o apoio à diversidade e a criação de mecanismos concretos de promoção social (como, por exemplo, iniciativas para egressos do sistema prisional ou para mulheres vítimas de violência doméstica). A governança e o compliance de toda a cadeia têm um papel mais significativo em apoiar e monitorar os impactos de sustentabilidade. Há convergência do pensamento lean com a gestão sustentável por preconizar padronização de processos, adaptabilidade e pressupostos mentais enxutos.

Em suma, o contexto global com consequência local é VUCA, e não há perspectiva de mudança. É fundamental olhar para a cadeia de suprimentos com uma visão sistêmica, sob a ótica do fluxo de valor. A tomada de decisão precisa ser consciente e antever as consequências e os impactos em toda a cadeia. A adoção de tecnologias é válida na medida em que colabora para a otimização da cadeia como um todo (aumentar valor e reduzir desperdício), e não apenas quando gera melhorias isoladas. Mas, sobretudo, o respeito pelas pessoas é a condição fundamental para o sucesso, a integração e a melhoria contínua em qualquer organização. Tais aspectos (visão sistêmica do fluxo de valor, reduzir desperdício e liderar com respeito) são os fundamentos do pensamento lean, que, portanto, mostram-se como meio seguro e eficaz para guiar as organizações (cuja cadeia de suprimentos é core, e não um “mal necessário”) em um caminho onde a única certeza é a de que o horizonte se mostra complexo e incerto.

Para aprofundar a discussão, fornecer comentários ou solicitar um atendimento, entre em contato com o autor pelo e-mail: [email protected]

Publicado em 05/01/2023

Autor

Daniel Felipe de Oliveira
Head para Supply Chain e Logística do Lean Institute Brasil

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