Não há quem pinte o retrato de uma cadeia de suprimentos quando estoura. Se
velhos problemas (baixa
acuracidade de estoque, longos lead times, rupturas, baixa confiabilidade de entrega) já
rondavam o dia a dia, e muitas vezes o sono dos profissionais da cadeia de abastecimento, os
últimos 30
meses demonstraram como novas e imprevisíveis fontes de instabilidade podem afetar diretamente os
fluxos
de materiais e informações. A pandemia da Covid-19, o navio EverGreen encalhado no Canal
de Suez e
a guerra da Ucrânia são exemplos de como as mudanças nos cenários globais
(com
efeitos locais) estão mais velozes e incertas. O cenário VUCA (Volatility,
Uncertainty, Complexity e Ambiguity) dá sinais que chegou sem passagem de
volta.
O contexto caótico reforça a necessidade das empresas se manterem competitivas. Enxugar
operações (reduzir desperdícios), garantir qualidade na origem, gerar
cadência e
aumentar velocidade e flexibilidade passam a ser direcionadores estratégicos para a
sustentabilidade
dos
negócios no mundo VUCA. A prática do pensamento lean, que aborda fundamentalmente esses
direcionadores, toma posição de destaque em assumir nas organizações um
papel de
norte verdadeiro como bússola para um caminho de incertezas.
Um novo cenário:
Em paralelo, para qualquer negócio, as exigências do cliente continuam em
evolução. O
encantamento do cliente passa a ser uma necessidade e amplifica trade-offs entre
custo-flexibilidade-risco, o que aumenta a complexidade para tomada de decisões. As
organizações, por sua parte, passam a coordenar mais processos fisicamente distantes e
envolvem
ciclos de desenvolvimento de produtos cada vez menores. O omnichannel (estratégia de
conteúdo que integra diferentes canais e mídias digitais para estreitar a
relação
com o cliente) continua em ampla expansão, o que reforça e acompanha o crescimento das
vendas
online. No e-commerce, o prazo de entrega passa a ser critério eliminatório, e a
demanda
de produtos se mostra com maior incerteza e variabilidade (o leite condensado foi o produto mais vendido
pelo
Mercado Livre em 2021). Se a estabilidade dos fluxos e o nivelamento de pedidos é uma premissa
para o bom
funcionamento de uma cadeia de suprimentos, o desafio dos profissionais logísticos é
continuamente
intensificado.
No last mile (último trecho da mercadoria para entrega ao cliente), tudo pode acontecer,
até mesmo perder o cliente. O next day delivery é sistematicamente
substituído
pelo same day delivery. Centros de Distribuição já se estruturam para
operar 7
dias por semana, 24 horas por dia. Além da disseminação do order fulfillment
nos
armazéns já existentes, novos canais, mecanismos de entrega e estratégias de
capilaridade
urbana estão em plena experimentação e consolidação para aumento da
flexibilidade (por exemplo, mais pontos de estoque de itens de giro, entrega por drone, uso de
locker…). Contudo, isso nem sempre acontece sem conflito entre diferentes segmentos de
negócio (por exemplo, quando a operação logística é compartilhada
entre venda
física e e-commerce ou quando há concorrência no depósito entre a
entrega ou
a retirada de produtos).
Ainda há o dilema dos itens de baixo giro. Sejam “elefantes brancos” que desembocaram no
estoque, “vacas sagradas” que alguém acredita que ainda serão vendidas ou outra
espécie do zoológico dos slow movers, demandam decisão de
destinação
ou onde serão estocados. É comum encontrar gestores defendendo o saneamento do estoque, sem,
no
entanto, validar ações concretas de disposição dos itens de baixo giro. O
impasse
é intensificado por um discurso crescente sobre a necessidade de aumento da produtividade da
operação logística. Contudo, a discussão não vem de hoje.
Evolução tecnológica:
Visibilidade e integração
Se a evolução do supply chain nos últimos
100 anos acompanhou o
desenvolvimento de novas tecnologias, conceitos e ferramentas, novos aparatos tecnológicos
serão
incorporados e desenvolvidos pelo e para o próprio supply chain. São exemplos de
tecnologia em expansão na operação logística voice picking,
veículos
autônomos (na logística interna e externa), a “uberização”
dos
recursos logísticos e os óculos de realidade aumentada, que abrem precedentes para a
imersão da logística no Metaverso. A incorporação do mundo virtual
nas
operações reais traz incertezas, porém estará cada vez mais em
experimentação e dá mostras de que o modelo phygital é uma rota
traçada para novos ecossistemas logísticos e sua inserção na Sociedade 5.0.
Tais ecossistemas também trazem uma característica fundamental de integração
entre
seus elementos constitutivos, o que remonta à conectividade e intensificação da
comunicação. O nemawashi (processo de conseguir aceitação e
avaliação de ideias) e o yokoten (desdobramento horizontal de conceitos)
são
práticas lean de promoção de integração e comunicação.
Nesse
sentido, sistemas de CRM/SRM (Customer/Supplier Relationship Management) podem se integrar,
juntamente
de outros elementos de monitoramento da cadeia logística e da operação interna, com
uma
perspectiva de Torre de Controle da cadeia de suprimentos. Um cuidado importante está nos
objetivos de se
criar controle: é preciso que traga agilidade para detecção de problemas e promova
aprendizado. Instrumentalizar controle apenas para gerar relatórios e indicadores tardios (ex. em
escala
mensal) pode acabar por não imprimir resiliência na cadeia como um todo.
Além da possibilidade de colaborar na versatilidade de adaptação, um elemento
gerencial de
ampliação da visibilidade pode ser conseguido por recursos de inteligência e
processamento
de informação. Por exemplo, big-data e algoritmos para previsão de demanda
(conceito de
antecipação logística), blockchain como protocolo de confiança, o
que
amplia o escopo e participação de fintechs na cadeia de valor, e algoritmo
genético para encontrar soluções em problemas de busca e otimização.
A
conexão dessas tecnologias, do sensoriamento e da inteligência artificial, da internet das
coisas
e de outras inovações indicam a possibilidade de construção de super
redes
logísticas e da efetivação da Logística 4.0.
Progressos tecnológicos ainda indicam a emergência de novos modelos de negócio e
rompimento
de paradigmas. A evolução da manufatura aditiva e da ciência dos materiais pode
permitir que
organizações comercializem o projeto do produto para impressão 3D na
residência do
cliente. Seria um modelo de cadeia mais livre de chances de desperdícios, mas também
incerto do
ponto de vista do caminho (com possíveis obstáculos e imprevistos) até essa
condição alvo. Um horizonte lean perfeito (e utópico) implicaria em uma
operação livre de todos os desperdícios: o cliente imagina, e o produto se
materializa
imediatamente na sua frente.
Há quem defenda que tais avanços tecnológicos permitirão e provocarão
por si
só uma melhoria da performance na cadeia de suprimentos. Se, por um lado, novas
ferramentas e
tecnologias são de fato capazes de gerar produtividade, por outro, sempre se deve enxergar a
cadeia como
um todo. A eficiência da cadeia é uma jornada de ponta a ponta, onde a
otimização
está no todo. Se não olhadas sistematicamente a partir do fluxo de valor, melhorias
isoladas
correm o risco de tornar um ponto específico da cadeia (por exemplo, um armazém) como um
único elo com produtividade em meio a uma rede de ruídos, problemas e instabilidade (por
exemplo,
fontes de demanda e sistema de gestão).
Mais que aplicar as novas tecnologias ou seguir certas tendências que podem
até ser entendidas como
modismos, o fio de Ariadne para adoção de tecnologias em meio ao labirinto da
incerteza e
complexidade está em enxergar o valor para o cliente.
É por meio do prisma do fluxo de valor que a visão sistêmica da cadeia pode
atingir seu
pleno potencial, permitindo identificar, em suma, quais atividades geram valor ou desperdício
e, com
isso, trazer aprendizados. A visão sistêmica com foco no cliente é o que permite
prosseguir
no entendimento dos principais problemas e causas correntes de instabilidade na cadeia, a fim de que
sejam
tratados primeiro (com automação ou não) e girar a roda da melhoria
contínua. Nesse
sentido, as Torres de Controle da cadeia de suprimentos são instrumentos bem-vindos, desde
que estejam
alinhadas ao propósito de gerar visão sistêmica e integração para
aumento da
visibilidade e resiliência da cadeia de valor.
Cadeia de suprimentos:
Palco da agregação de valor
No caminho da melhoria contínua, o grande benefício da adoção
tecnológica
está na redução do lead time para tratamento dos problemas. Seja por
permitir
novas experimentações (errar rápido, corrigir rápido) ou acelerar e
automatizar o
método de solução de problemas, a função tecnológica
está
associada a reduzir esse intervalo de tempo. Em outras palavras, o ganho da organização
está em poder reduzir os tempos de percepção, análise, decisão e
correção de cada problema. A capacidade de permitir visibilidade dos problemas e
suas
causas, bem como a possibilidade de antecipação de informações
e predição de eventos, está contida no conceito do lead time para
tratamento
dos problemas.
Uma alternativa à possível incapacidade de visibilidade ou antecipação de
eventos
imprevisíveis é o aumento da flexibilidade e capacidade nos processos da cadeia de
suprimentos,
inclusive na manufatura. A curva de trade-off do custo (estoque ou fabricação) e
da flexibilidade
se acentua na medida em que as cadeias procuram se manter competitivas, mas resguardando a premissa do
encantamento do cliente, que pode envolver o “same day delivery”. Considerando que
nem
todas as variações de demanda serão possíveis de serem antevistas (uma vez
que
ocorram), a capacidade da cadeia em ser flexível pode ser o diferencial para o atendimento do
cliente.
A sutileza na capacidade de avaliar alternativas de decisão no páreo das curvas de
trade-offs
sugere o elemento fundamental na perspectiva de uma cadeia de suprimentos de sucesso: as pessoas.
Muito
além das capacidades de inteligência artificial, o potencial criativo e inovador, com
respeito
pelas pessoas, é o que nos torna humanos. A pandemia proporcionou aprendizados ímpares no
que
concerne ao respeito pelas pessoas: ao lidar com a vida e a morte, a responsabilidade das
decisões nas cadeias de suprimento remonta ao impacto nos indivíduos. Em meio
ao contexto de incertezas e complexidade, os
profissionais da cadeia de suprimentos estão se demonstrando como verdadeiros heróis.
Enquanto
dedicam boa parte de seu tempo em apagar “incêndios”, são cobrados por
melhorias ou
metas nas quais não tiveram participação na construção. É
preciso
entender e revigorar a visão das lideranças pelo prisma da cadeia de suprimentos, sempre
com
respeito às pessoas.
Decisões organizacionais invariavelmente geram implicações na cadeia de
suprimentos. Mesmo que
uma decisão não gere em si um desperdício em função da cadeia de
valor em que foi
gerada (por exemplo, em marketing ou em desenvolvimento de produto), certamente valor ou
desperdício
serão gerados na cadeia de suprimentos.
Por onde começar?
O Maior impacto para o Cliente
É a cadeia de suprimentos que vai servir como o local
das decisões que impactam o cliente. É lá que nosso foco precisa estar.
É urgente que os sistemas de decisão, principalmente nos altos níveis de
liderança,
que muitas vezes se encontram distantes do gemba (local da operação), compreendam
sistematicamente
os efeitos na cadeia de suprimentos a partir de cada deliberação (ocorrida em vendas,
marketing, P&D etc.) e o que pode gerar de desperdícios e problemas no curto,
médio
ou longo prazo. Dentre eles estão o aumento de estoque, o efeito chicote, o aumento da
variabilidade de
processo, a instabilidade operacional, o aumento de trabalho não padronizado, o aumento de horas
extras e
os problemas na moral das equipes. A boa notícia é que há uma proposta concreta
para
abarcar as pessoas e os processos frente aos desafios.
Não se esquecer do básico:
De volta aos fundamentos
O respeito pelas pessoas e a visão sistêmica da cadeia com ótica no
fluxo de valor
associam-se na abordagem do pensamento lean. O lean ainda agrega metodologias (por exemplo,
hoshin, A3
e GD – Gerenciamento Diário) capazes de guiar o comportamento da
liderança
na tomada de decisão orientada a um propósito e com engajamento e
participação das pessoas, o que configura um meio para distinguir as distintas curvas de
trade-offs e abordá-las de modo complementar. A proposta de assumir a
gestão lean da cadeia de suprimentos torna o caminho organizacional orientado a um
propósito comum, que enxerga o
próximo passo em ciclos curtos de interação e permite à equipe se manter no
rumo
certo, tendo como única certeza o fato de que surgirão obstáculos, imprevistos,
problemas e
anomalias.
Em uma perspectiva de organizações que, ao pautar a prioridade da experiência do
cliente,
decidem por trazer a si as responsabilidades end-to-end na cadeia (evitando, por exemplo, o
“vendido e entregue pela empresa x”), o lean passa a ter uma expressão ainda mais
significativa. Além da cadeia interna (door-to-door), o end-to-end
implica de forma mais
eloquente a necessidade de visão sistêmica para a tomada de decisão.
Isso
não inibe iniciativas de terceirização ou quarteirização, que podem
ser
inclusive necessárias para viabilizar a ampliação de operações.
Contudo,
é preciso que o propósito comum seja compartilhado e difundido, de forma que os parceiros
estejam
integrados como uma única equipe a agregar valor para o cliente.
Cabe ainda destacar a importância em considerar objetivamente o papel da cadeia de suprimentos na
sustentabilidade. Além da perspectiva econômica, que envolve o TCO (Total Cost of
Ownership), o cuidado com aspectos e impactos ambientais ao longo do ciclo de vida do produto
é
reforçado no desenvolvimento da Logística Reversa e na construção de modelos
de
Economia Circular. Toma também cada vez mais relevância a consideração de
impacto
social a todas as partes interessadas envolvidas na cadeia de valor: clientes, funcionários,
comunidade
local, sociedade em geral etc. Destaca-se o apoio à diversidade e a criação de
mecanismos
concretos de promoção social (como, por exemplo, iniciativas para egressos do sistema
prisional ou
para mulheres vítimas de violência doméstica). A governança e o
compliance
de toda a cadeia têm um papel mais significativo em apoiar e monitorar os impactos de
sustentabilidade. Há convergência do pensamento lean com a gestão sustentável
por
preconizar padronização de processos, adaptabilidade e pressupostos mentais enxutos.
Em suma, o contexto global com consequência local é VUCA, e não há
perspectiva de
mudança. É fundamental olhar para a cadeia de suprimentos com uma visão
sistêmica, sob a
ótica do fluxo de valor. A tomada de decisão precisa ser consciente e antever as
consequências e
os impactos em toda a cadeia. A adoção de tecnologias é válida na medida
em que colabora
para a otimização da cadeia como um todo (aumentar valor e reduzir
desperdício), e não
apenas quando gera melhorias isoladas. Mas, sobretudo, o respeito pelas pessoas é a
condição fundamental para o sucesso, a integração e a melhoria
contínua em
qualquer organização. Tais aspectos (visão sistêmica do
fluxo de valor,
reduzir desperdício e liderar com respeito) são os fundamentos do pensamento lean,
que, portanto,
mostram-se como meio seguro e eficaz para guiar as organizações (cuja cadeia de
suprimentos é
core, e não um “mal necessário”) em um caminho onde a
única certeza é a de
que o horizonte se mostra complexo e incerto.
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