Da competitividade à sobrevivência
Vivemos em tempos muito diferentes de quando descobrimos o lean há mais de 30 anos. Estamos no meio de uma crise climática que ameaça nossa própria existência neste planeta, e é óbvio que isso exige uma resposta muito diferente da que temos dado até agora. Na verdade, não se trata mais de competitividade, mas de sobrevivência.
Abordar esta crise significa repensar tudo o que fazemos – as tecnologias que desenvolvemos, os produtos e serviços que fornecemos, as fontes de energia que usamos, as cadeias de abastecimento das quais dependemos, a pegada global que produzimos e os sistemas de gestão que temos em vigor em nossas organizações. No final das contas, são as decisões e ações de milhões de empresas e indivíduos que determinarão como sobreviveremos nesta década crítica.
O lean é frequentemente percebido como um método ascendente para aumentar a competitividade, eliminando o desperdício, mas isso é apenas uma fração de seu verdadeiro potencial. O pensamento lean já ajudou a melhorar muitos processos importantes em grandes operações de nossas maiores corporações – o que considero como legado da era da produção em massa. Os líderes da indústria estavam ansiosos para ver mudanças graduais no desempenho, mas muitos deles não se sentiam desafiados o suficiente para mudar seus comportamentos para sustentá-los.
É possível que a crise climática possa nos forçar a repensar mais fundamentalmente a maneira como pensamos e agimos, desbloqueando todo o potencial do pensamento lean? Que lições podemos tirar de nossas experiências com o lean que podem nos ajudar a lidar com a emergência climática? Vejo três lições principais, que descrevo abaixo. Mas, primeiro, vamos resumir as mudanças fundamentais trazidas pelo pensamento lean nas últimas três décadas.
A revolução da toyota
O período pós-guerra viu a implantação de conhecimentos especializados dentro das organizações, em funções, departamentos, máquinas, fábricas, armazéns etc. Cada uma dessas atividades era “gerenciada por números” e por sistemas de controle (como MRP, ERP e SAP) para otimizar seu uso, mantendo todas as atividades ocupadas. Da mesma forma, cada departamento de desenvolvimento de novos produtos transferia seu trabalho para o departamento seguinte, e assim por diante, até o lançamento. A estratégia, portanto, se concentrava em garantir posições dominantes nos mercados por meio de branding e marketing. As externalidades eram responsabilidade dos governos, e as cadeias de suprimentos cortavam o que podiam para aproveitar o transporte barato e os locais de baixos salários, incluindo a China. A grande quantidade de desperdício e a falta de flexibilidade nesses sistemas foram amplamente ignorados.
Há mais de 30 anos, a Toyota mostrou ao mundo como ir além – como dobrar a produtividade, eliminar defeitos de qualidade e projetar novos produtos na metade do tempo. Por um lado, eles fizeram isso integrando atividades de produção em fluxos de valor e sincronizando esses fluxos de valor com as necessidades dos usuários. Fazer com que sistemas integrados complicados funcionem depende de cada etapa ser sempre totalmente capaz de completar a tarefa e de responder rapidamente a interrupções ou desvios. Também depende de ser capaz de trabalhar de acordo com a demanda puxada pelos usuários, ao invés de uma cadeia de previsões que amplificam a sinalização fluxo acima. E em um compromisso compartilhado de colaborar para resolver problemas a fim de proporcionar benefícios em outras partes do sistema.
Por outro lado, a Toyota também integrou suas atividades de desenvolvimento em um processo contínuo, projetando novos produtos em uma cadência regular. Cada família de produtos é liderada por um engenheiro-chefe, encarregado de examinar as mudanças nas necessidades do usuário, as opções de tecnologia e as experiências de produção para definir os problemas a serem tratados neste novo produto. O engenheiro-chefe também articula os recursos exigidos pela equipe para resolver esses problemas e analisa regularmente o progresso com a equipe em uma sala de projeto visual, ou obeya. Em vez de pular para as soluções prontas, a equipe explora soluções técnicas alternativas simultaneamente, para que o design resultante possa progredir rapidamente para o lançamento. Em cada estágio, o aprendizado é revisado e capturado para uso futuro. Inspirado pelo exemplo da Toyota, o desenvolvimento de software passou por uma progressão semelhante, de agile para scrum e DevOps, com melhoria contínua de design modular e testes, permitindo que eles passassem de lançamentos semestrais para diários.
Aprendendo com a solução de problemas
A primeira lição muito importante que podemos tirar do lean para descobrirmos a melhor maneira de lidar com as mudanças climáticas é que os sistemas integrados só funcionam se todos os colaboradores estiverem engajados em estabilizar seu trabalho, respondendo a interrupções e usando a solução científica de problemas para fazer melhorias detalhadas no sistema. Embora as etapas de rotina possam ser automatizadas, a tomada de decisão humana é indispensável, especialmente em tempos instáveis e que mudam rapidamente. A solução cumulativa de problemas desenvolve os recursos para lidar com mudanças, tarefas mais complexas e novos desafios. Isso é crucial (junto com o feedback dos usuários) no design de produtos, nos processos da próxima geração e na rápida expansão de novas tecnologias por meio de iterações sucessivas.
O desenvolvimento dessas capacidades por meio do “aprendizado gerado pela solução de problemas” não acontece de forma simples. Precisa ser parte de um processo de melhoria estruturado no qual os líderes de equipe e gerentes em todos os níveis são responsáveis pelo desenvolvimento das capacidades de seus subordinados, apoiados por uma rede de sensei (professores) que orientem os alunos – incluindo os executivos seniores –, façam perguntas e ajudem na reflexão sobre as lições aprendidas em cada ciclo de solução de problemas. Esse compromisso com o aprendizado e o desenvolvimento de pessoas cria uma cultura de respeito e responsabilidade, em vez de tratar os colaboradores como bens descartáveis. O quão bem essas capacidades são mobilizadas será uma prova da seriedade com que os líderes encaram a crise climática.
Enxergar o todo
A segunda lição é a importância de enxergar o desempenho e o impacto de todo o sistema e do fluxo de valor estendido com seus principais afluentes. Ajudei equipes executivas a enxergarem suas operações como um sistema de processos interligados. Também “caminhei” por muitas cadeias de suprimentos estendidas em todo o mundo e descobri que as economias de escala e as vantagens de custo de mão de obra são mais do que compensadas pelos ganhos de sincronização e codesenvolvimento. Por exemplo, presenciei um caso em que as peças de um sistema automotivo eram feitas em 14 fábricas diferentes na China, no Japão, no Brasil e na Europa. Com isso, elas levavam até 630 dias para chegar a um cliente nos EUA. O produto de última geração dessa mesma montadora, desenvolvido, agora, com as bases lean, é feito com ferramentas do tamanho certo em somente 9 fábricas, todas dentro da distância de transporte do cliente, reduzindo o lead time para 37 dias e eliminando o envio e o despacho de frete aéreo.
Só a proximidade não é suficiente, mas ela permite que os parceiros da cadeia de suprimentos se comprometam a desenvolver as outras capacidades necessárias para melhorar continuamente a sincronização de suas operações conjuntas. O objetivo do just-in-time é revelar os próximos problemas para as equipes trabalharem, ao invés de otimizar a logística de longa distância, como muitas vezes é erroneamente relatado. A crise climática apresenta a oportunidade de repensar a lógica da localização e de construir complexos de abastecimento dinâmicos em cada região. Isso também levanta questões sobre a abordagem que prevalecerá no futuro – centralizar a produção em grandes fábricas ou distribuí-la em fábricas do tamanho certo que fiquem mais perto dos clientes. Enxergar todo o sistema também é fundamental para entender seu impacto no meio ambiente e na economia circular, da reciclagem à reutilização.
Tomada de decisões usando a ciência
A terceira lição é que o método científico é o ingrediente essencial na gestão de sistemas integrados e no “aprendizado gerado pela solução de problemas”. Deming destilou o método científico em seu ciclo de solução de problemas Plan-Do-Check-Act (PDCA). Com o tempo, Eiji Toyoda operacionalizou isso em um sistema comercial completo. O PDCA é a linguagem comum para tomar e executar decisões em todos os níveis, desde a formulação de estratégias e grandes saltos até melhorias incrementais detalhadas. Ele está embutido em um sistema de gestão de desempenho que rastreia o progresso, a estabilidade e as capacidades do fluxo de valor, na visualização do “planejado” versus o “real” em todos os lugares, em salas visuais para gestão de projetos e tomada de decisão estratégica (obeya), em uma estrutura para planejamento e realização de experimentos para encontrar soluções que funcionem (A3), em um diálogo catchball fluxo acima e fluxo abaixo da organização alinhando as lacunas de desempenho corporativo com ações propostas para fechá-las (hoshin) e em “cadeias de ajuda” para escalar e remover obstáculos para a melhoria.
Essa abordagem científica também direciona o processo estratégico para encontrar e definir em quais problemas de alto nível a organização precisa se concentrar. Isso é particularmente importante em tempos de mudanças profundas, enfrentando novos problemas que ainda não sabemos como resolver, como sobreviver à crise climática. Isso começa pelo que a Toyota chama de “consciência do problema”, encontrando as perguntas certas a serem respondidas por meio da observação detalhada da situação atual e das possibilidades técnicas. Esses problemas são, então, divididos em partes gerenciáveis, estabelecendo um sistema de medição para rastrear o progresso e resolvê-los. Cada problema é enquadrado como uma lacuna a ser fechada, e propostas para fazê-lo são solicitadas por meio de um diálogo catchball de hoshin, antes que muitos experimentos diferentes sejam conduzidos para descobrir o que funciona e o que não funciona. Por fim, o conhecimento adquirido é capturado e compartilhado com as equipes da empresa.
Esse processo de descoberta de problemas de alto nível é a chave para fazer a arquitetura de solução de problemas funcionar e para aproveitar o poder criativo da organização. É um desafio para os líderes acostumados a decidir sobre soluções, traçar planos para entregar a especialistas para implantar em toda a empresa e, em seguida, lidar com as consequências indesejadas. Essa abordagem tradicional de gestão sufoca o aprendizado e leva inevitavelmente à resistência à mudança e à proteção dos ativos e mercados existentes. Por outro lado, uma abordagem lean à estratégia e à aprendizagem fornece uma maneira promissora de enfrentar os desafios da crise climática.
A ciência tem sido fundamental para entender o que está acontecendo com o sistema climático global, e o pensamento científico será fundamental para responder a isso e para nossa sobrevivência. Novas tecnologias serão importantes, mas também será nossa capacidade de ampliá-las com rapidez suficiente e integrá-las em nossas vidas. Aprender a usar a solução científica de problemas no trabalho também proporcionará a milhões de pessoas uma experiência direta da importância do pensamento científico. Essa democratização da ciência pode ser um dos legados duradouros do pensamento lean.