O lançamento do livro “A Máquina que mudou o mundo”, em outubro de 1990, alterou radicalmente a maneira como as pessoas entendiam a competitividade na indústria automotiva mundial.
Introduziu “lean” ao mundo – o termo trazido pela obra que se tornou sinônimo de um novo modelo de gestão, usado globalmente hoje em dia por muitas empresas, de praticamente todos os setores.
Tornou-se um clássico, por sua capacidade de compreender a magnitude da enorme transformação que estava em curso. E por descrever em detalhes o novo paradigma de gestão que estava amadurecendo, baseado no sistema da Toyota.
O argumento central do livro é que as companhias de produção em massa estavam perdendo para as organizações lean, o que é demonstrado de maneira inquestionável através de dados e análises, que explicaram de maneira clara os conceitos geradores dessa superioridade.
Foi descrito um novo sistema completo de negócios, envolvendo o desenvolvimento de produtos, a produção, o gerenciamento de fornecedores, a relação com os clientes e o gerenciamento geral.
Entretanto, se a contribuição na manufatura foi percebida de forma clara e rápida, levando a um despertar nas fábricas do mundo todo, nas outras dimensões do modelo de negócio isso não ocorreu de imediato, e importantes aspectos do sistema lean continuam até hoje pouco desenvolvidos, em muitas empresas.
Por exemplo, os impactos sobre a área de Desenvolvimento de Produtos e inovação, descritos na obra, foram pouco reconhecidos, naquela época. Somente nos últimos anos, tem crescido o interesse pela aplicação dos conceitos lean nesse elemento fundamental do sistema. Ali, começa a visão do produto que estabelece as expectativas do valor a ser agregado para os clientes e a sua conexão com a empresa inteira. E é no desenvolvimento de produtos e processos que temos o melhor momento para conceber uma produção e entrega realmente lean, considerando todo o fluxo de valor.
Na cadeia de fornecedores, os aspectos de logística e fornecimento puxado foram logo percebidos e tiveram avanços. Porém, os princípios mais profundos revelados no livro – de confiança, relacionamentos duradouros e cooperação para eliminação de desperdícios e compartilhamento de ganhos – até hoje são praticados de forma muito limitada.
E a mudança na relação com os clientes também passou despercebida. Poucos deram atenção à descrição do esforço de criar uma maior conexão com os consumidores, tendo a área de vendas como uma ponte para isso, integrada com o restante da organização.
“A Máquina que mudou o mundo” foi muito mais do que apenas um livro. A obra teve um efeito prático profundo, levando à criação de um movimento lean mundial, que extrapolou em muito a indústria automotiva. Hoje, é largamente utilizada em praticamente todos os setores econômicos.
Foi a primeira pesquisa global em que o desempenho do Brasil foi comparado a outros países. E os resultados não foram muito lisonjeiros. A indústria brasileira tinha os piores níveis de produtividade e qualidade no mundo, produzindo um portfólio de produtos antiquados. A proteção à indústria instalada no país tinha gerado um sistema estagnado e oligopolista, frustrando o interesse dos consumidores e da sociedade.
Felizmente esse cenário vem mudando nas últimas décadas, apesar dos enormes problemas estruturais que ainda persistem.
Também foi muito limitado, no início, o aprendizado dos líderes sobre como conectar as melhorias que estavam sendo feitas nos processos com os resultados do negócio e com o desenvolvimento das capacidades das pessoas.
Muitas vezes, estavam mais interessados apenas na parte da eficiência e otimização. Ou procuravam soluções fáceis e rápidas para seus problemas, como se pudessem simplesmente “adicionar” lean ao que já estavam fazendo para eliminar alguns desperdícios.
Essa postura é vista até hoje em iniciativas focadas somente nas “ferramentas”, sem entender o lean como um sistema de gestão estratégico, que pode mudar completamente o patamar competitivo da empresa.
O Brasil foi um dos pioneiros na difusão do movimento lean com a criação, em 1998, do Lean Institute Brasil (LIB), fundado por José Roberto Ferro, que participou da pesquisa que deu origem ao livro. Foi o segundo instituto lean no mundo, após o Lean Enterprise Institute, dos EUA, criado por James Womack, um dos líderes da pesquisa e coautor de “A Máquina...”. Esses dois institutos deram início à rede Lean Global Network, hoje presente em mais de 30 países.
O pensamento lean se espalhou amplamente nas empresas brasileiras e entre os profissionais. Em muitos casos, a iniciativa de transformação lean em companhias globais começou aqui, e posteriormente foi adotada em toda a corporação.
Podemos dizer que a comunidade lean no Brasil é uma das mais ativas. Muitas pessoas experimentaram esses novos conceitos e práticas e perceberam o seu poder e eficácia. Porém, o quão profundo é esse entendimento, ainda é uma questão central.
No LIB, aprendemos muito nesses anos todos desde “A Máquina...” ao ajudar tantas empresas na transformação lean. Nosso entendimento sobre liderança lean foi aprofundado, ampliamos nossa compreensão sobre o sistema de gestão e contribuímos com métodos essenciais, como o desenvolvimento de solucionadores de problemas com o pensamento A3. Também construímos uma visão holística da transformação lean, que enfatiza a necessidade de ir além de processos, alinhando propósitos, capacidades das pessoas, sistemas de gestão, comportamentos da liderança e modelos mentais.
A mensagem de “A Máquina...” ainda é muito relevante na atualidade. Difundiu as bases de um modelo de gestão baseado no respeito às pessoas e no desenvolvimento de lideranças. Que traz como resultado o uso responsável dos recursos e propicia às empresas um desempenho superior, ao abordar os desafios contemporâneos da nossa sociedade, como a mudança climática, o uso crescente das novas tecnologias, as mudanças dos hábitos dos consumidores decorrentes da pandemia da covid-19, entre outros.
O legado duradouro de “A Máquina...” e do pensamento lean talvez possa ser a democratização da experiência de usar o método científico e a solução de problemas de todos os níveis em nosso dia a dia, em tudo o que a gente faz nas empresas e na sociedade, gerando novas hipóteses práticas, aprendendo e melhorando todos os dias.