Um salto importante na jornada lean das organizações ocorre quando a liderança entende que a filosofia
lean vai muito além das melhorias operacionais,
e percebe o enorme potêncial de aplicá-la a partir do processo de formulação e desdobramento da estratégia.
O estilo lean de fazer isso é conhecido como hoshin kanri (ou simplesmente hoshin), conceito desenvolvido no Japão na década de 1960 como parte dos esforços visando à qualidade total, e que foi incorporado ao sistema lean, num formato muito simples e efetivo. Elementos desse sistema, descritos no livro de Pascal Denis, como o alinhamento em torno de poucos objetivos priorizados e rigorosos ciclos de PDCA, são potencializados, quando combinados com o pensamento A3.
Hoshin alinha a liderança horizontal e verticalmente, conectando a solução de problemas e iniciativas lean nos diversos níveis com os objetivos organizacionais, evitando esforços dispersos.
Uma boa maneira de entender o hoshin é analisar como ele nos ajuda a superar “10 problemas típicos” do planejamento estratégico tradicional, que ocorrem em muitas empresas:
Problema 1: Focar nos números, e não nas ações que vão trazer os resultados
Diversas organizações dispendem a maior parte de seus ciclos anuais de planejamento quase que exclusivamente no processo de elaboração de orçamento. Inúmeras versões de planilhas transitam entre unidades e a sede corporativa, tentando estabelecer o faturamento, custos e despesas, resultados, investimentos etc. para o próximo ano. Esse processo passa a exigir todo o foco da direção, restando uma atenção muito menor à efetiva discussão de estratégias e planos, que muitas vezes é feita após o orçamento estar totalmente estabelecido, o que condiciona a alocação de recursos. Em geral, os gerentes cedem, aceitando cortes de custos ou aumentos de receitas esperadas, sem terem a menor ideia de como poderão alcançar as metas estabelecidas.
No hoshin, a discussão dos objetivos e metas não é desvinculada da formulação das diretrizes e identificação das melhorias de processos organizacionais necessárias, para que se obtenha resultados esperados.
Problema 2: Dar muita atenção à seleção das estratégias, mas pouco em como desdobrá-las
O processo de planejamento estratégico tradicionalmente tem um foco muito forte
na seleção de estratégias. Em geral, as empresas desenvolvem sofisticados processos
para isso, com consultorias especializadas, análise de cenários etc., e conseguem
definir focos futuros de atuação para seu crescimento e diferenciação. Entretanto,
rumos bem definidos muitas vezes se perdem por falhas no desdobramento. Se pensarmos
em termos de PDCA, uma parte importante do P (planejar) é feita, mas sem preparar
o D (fazer), além da frequente inexistência do C (verificar) e A (agir).
A tradução da palavra hoshin, aponta para o significado de rumo, direção ou a estratégia a ser seguida. Mas o processo de hoshin kanri tem uma ênfase muito maior na segunda palavra (kanri), que tem o significado de desdobramento, ou como os objetivos serão atingidos.
Problema 3: Realizar planos de ação dispersos
É frequente encontrarmos empresas onde o planejamento estratégico gera dezenas de planos de ação desconexos entre si e de pouca visibilidade e rastreabilidade em relação aos objetivos maiores da empresa.
No hoshin, a direção estabelece, a partir da Visão, Missão e Valores da empresa, os objetivos e estratégias de longo prazo (5 a 10 anos, por exemplo) e, a partir destes, define o Norte Verdadeiro, explicitando as poucas prioridades de cada ciclo anual que vão conduzir a empresa em direção à condição desejada no longo prazo.
Esses objetivos, metas e ações priorizados são desdobrados, utilizando-se o pensamento A3. O Norte Verdadeiro gera A3 estratégicos, e estes, se necessário, A3 de segundo nível. O processo exige intenso nemawashi (comunicação, debate e criação de consenso).
Problema 4: Executar o processo quase que exclusivamente top down
O processo tradicional é predominantemente top down. Em geral, as metas, e até mesmo ações, são estabelecidas pela direção, comunicando às equipes o que executar.
O hoshin combina interações top down, bottom up e horizontais, no processo conhecido como catchball. O alinhamento vertical se dá nos dois sentidos, com a direção cascateando diretrizes (que problemas resolver, o que fazer e por quê), objetivos, metas e recursos, e as equipes retornando com iniciativas e inovações de como fazer, para sustentar essas diretrizes e trazer os resultados. Horizontalmente as metas e ações são checadas entre os diferentes A3 estratégicos e áreas organizacionais, evitando conflitos e buscando sinergias.
Através do catchball, os times, nos diversos níveis organizacionais, não
só executam as estratégias, mas são também parte do processo de sua formulação.
Por essa razão, o processo de hoshin, muitas vezes denominado de desdobramento da
estratégia, pode ser mais adequadamente entendido como “alinhamento estratégico”.
Problema 5: Estabelecer metas conflitantes
Não é raro observar empresas com dezenas de indicadores e metas, estabelecidos predominantemente nos silos organizacionais. Isso, combinado ao processo predominantemente top down e o foco maior nos números e menos em como obtê-los, gera muitas vezes metas e ações conflitantes entre as diversas áreas da empresa.
O processo de catchball (alinhamento) e nemawashi (construção do consenso), aliados ao Norte Verdadeiro, descritos anteriormente, funcionam como contramedidas que evitam esse desalinhamento.
Problema 6: Planejar ações para um futuro distante sem identificar o que precisa mudar hoje para construir o amanhã
O processo de planejamento estratégico é, antes de qualquer coisa, um processo de
tomar decisões quanto ao futuro. Os processos tradicionais, em geral, resultam em
uma detalhada definição de novos produtos, modelos de negócio, nichos de atuação
etc., o que é, sem dúvida, fundamental.
Entretanto, por vezes, não recebem a necessária atenção os processos atuais, o que
pode comprometer as condições necessárias para se pavimentar o caminho até a situação
futura desenhada. Por exemplo, insatisfação de clientes e problemas de entrega podem
danificar a imagem da empresa, deteriorando seu posicionamento perante clientes,
dificultando a introdução dos novos produtos ou negócios do futuro. Deficiências
operacionais podem comprometer a geração de caixa, inviabilizando investimentos
necessários. Sem a profunda compreensão da situação atual corre-se o risco de planejar
um “gigante com pés de barro”.
O hoshin, e todo esforço de melhoria no lean, inicia sempre conhecendo a situação atual e entendendo os problemas. Isso só pode ser feito com o levantamento e análise de dados e fatos, sendo imprescindível a ida aos diversos gemba (locais onde as coisas acontecem, seja uma área de fabricação ou escritório, instalação onde o cliente usa o produto, fornecedores etc.). Essa é uma etapa que muitos evitam, por ser dolorosa, pois exige a explicitação dos problemas atuais. Sua execução, conforme a disciplina do pensamento A3, leva à identificação de diversos riscos e também de inúmeras oportunidades, que não podem ser desprezadas.
Problema 7: Chegar a pretensas soluções sem entender o problema
Nas organizações onde observamos dezenas de ações geradas nos ciclos anteriores
(problema citado anteriormente), em geral, fica claro o processo que gerou essa
lista: líderes funcionais (por exemplo, diretores das diversas áreas) são solicitados
a trazerem propostas de ações. Muitas dessas ações se referem a novos investimentos
(ampliação da equipe, uma nova instalação, novos equipamentos etc). São pretensas
soluções, mas via de regra não está claro que problemas pretendem resolver. Reproduzem
o modelo mental de jump to solution, ou seja, a tendência predominante de
propor ações sem entender os problemas e suas causas.
A utilização do pensamento A3 no processo hoshin é fundamental para disciplinar a aplicação, em todos os níveis, da solução de problemas com método científico, gerando contramedidas muito mais efetivas, que levam a resultados mais rápidos, duradouros, e com menores investimentos.
Problema 8: Transferir a responsabilidade dos líderes para funções de apoio
Em algumas empresas, os líderes funcionais (como Diretores e Gerentes) estão absorvidos em apagar os incêndios do dia a dia e dão pouca prioridade à discussão do futuro, participando somente ocasionalmente do processo de planejamento, deixado nas mãos de áreas específicas de estratégia da empresa. O acompanhamento dos planos gerados é muitas vezes delegado a estruturas, como PMO (Project Management Office), e não é raro vermos um diretor cobrar o PMO quando uma ação de sua área não acontece. Podemos chamar este de um “sistema empurrado”, onde as áreas de apoio (estratégia e PMO) ficam tentando “empurrar” o planejamento e ações para as áreas funcionais.
No hoshin, como em tudo no lean, usa-se o “sistema puxado”, que neste caso
seria o presidente puxando a iniciativa dos diretores, estabelecendo um Norte Verdadeiro
desafiador, e os diretores tomando a liderança do processo, puxando suas equipes
e áreas de apoio para o cascateamento das ações. A responsabilidade da direção em
liderar pessoalmente o hoshin e responder pela sua implementação e resultados é indelegável.
Problema 9: Desenvolver pessoas de maneira desconectada do processo de planejamento
As empresas possuem seus processos de desenvolvimento de pessoas em diferentes graus de maturidade. As mais avançadas buscam uma conexão do desenvolvimento com as prioridades estratégicas, realizando um desdobramento.
Mesmo nessas empresas, o que raramente se vê é a utilização do processo de planejamento estratégico como uma oportunidade ímpar de desenvolvimento das pessoas, o que é uma premissa do hoshin.
A utilização do pensamento A3 no hoshin fornece a estrutura para isso, desenvolvendo solucionadores de problemas com visão das necessidades do negócio. Os líderes evitam dar soluções; buscam fazer as perguntas certas que vão fazer com que suas equipes pensem e sigam o método de solução de problemas, gerando ações fundamentadas e efetivas.
Problema 10: Alcançar baixa disciplina na execução
A combinação dos vários problemas típicos descritos anteriormente gera um ambiente de baixo comprometimento, refletido na falta de processos de acompanhamento e aprendizado – C (verificar) e A (agir/ajustar) do PDCA. Em muitos casos, quando perguntamos como está a execução das dezenas de planos gerados no ciclo anterior, poucos sabem responder.
No hoshin, a fase de planejamento já gera consenso e comprometimento, refletidos em planos detalhados e processos de acompanhamento combinados. As fases C e A sistematizadas completam a necessária disciplina na execução, utilizando rotinas de acompanhamento que conectam os diversos níveis, salas de controle visual (obeya) e outras práticas.
Se você identifica alguns desses problemas no planejamento estratégico de sua empresa, pode ser um bom momento de considerar a aplicação do hoshin kanri para levar a transformação lean a um novo patamar de maturidade e abrangência.