Muitas empresas já perceberam como é difícil manter o ritmo de melhoria obtido no início da transformação lean. No primeiro ano, é praticamente certo obter aumentos drásticos de produtividade, redução de prazos, melhoria da qualidade etc.
Mas, após o entusiasmo dos primeiros resultados, em vez de se consolidar, ampliar e aprofundar continuamente, como seria desejado, algumas jornadas passam por altos e baixos. Por vezes, a disciplina necessária não é mantida, pessoas são transferidas, entram outras que não conhecem lean, a própria liderança começa a dar sinais contraditórios etc., e, de repente, as velhas práticas ressurgem, fazendo com que os resultados regridam.
Se isso vem ocorrendo em sua empresa, esteja certo: você não está sozinho. Esse fenômeno se repete com mais frequência do que gostaríamos.
Isso traz à comunidade lean importantes perguntas. Por que isso ocorre? Como realizar transformações lean mais robustas e sustentáveis, evitando esses altos e baixos?
Essa questão vem sendo discutida há algum tempo, e uma causa raiz pode ser apontada: o foco de diversas empresas quase que exclusivo em implantar ferramentas lean, com propósito vago, sem considerar aspectos mais amplos do sistema.
Como contramedida a essa e a outras causas identificadas para a instabilidade de resultados, a
LGN, rede de institutos lean da qual o LIB faz parte, desenvolveu um referencial, que chamamos de Lean Transformation Framework (LTF). Proposto por John Shook, presidente da LGN e autor de importantes livros (como o "
Aprendendo a Enxergar" e "
Gerenciando para o Aprendizado") bastante conhecidos pela comunidade lean, o LTF apresenta cinco questões fundamentais, que ajudam as empresas a refletirem sobre sua transformação.
Lean Transformation Framework - LTF
Qual é o propósito?
Somos procurados por muitas empresas buscando ajuda para sua implementação lean. Ao perguntarmos o porquê dessa mudança, recebemos muitas vezes respostas genéricas, como: “precisamos aumentar nossa produtividade”, “queremos eliminar desperdícios” ou até “a matriz adotou lean corporativamente, e precisamos fazer na filial do Brasil”.
Propósitos vagos são um mau início da jornada lean. Isso resulta muitas vezes em um processo de empurrar a aplicação de ferramentas lean sem objetivos claros de desempenho. A filosofia lean exige mudanças de paradigmas e tira as pessoas da zona de conforto. Se a real necessidade da mudança não está clara para todos, as ferramentas são usadas de maneira burocrática e vão sendo esquecidas.
É por isso que, no início de uma inciativa lean, seja na empresa toda ou em uma área específica, uma questão tem que estar clara para todos os envolvidos: qual problema precisamos resolver?
O propósito da transformação lean está claro se conseguirmos responder algumas questões:
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Qual é a necessidade do negócio (desafio competitivo)?
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O gap está claro (desempenho atual x necessário)?
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Qual é o problema fundamental (causas)?
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Existe um plano claro para atingir os objetivos?
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Os envolvidos participaram e concordam?
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Os planos e objetivos estão priorizados, desdobrados e bem comunicados?
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Os indicadores e prazos estão claros?
Faça um teste: essas perguntas estão completamente respondidas em sua empresa? Podemos afirmar que poucas empresas passariam nesse teste.
Como melhorar o trabalho?
Esta pergunta nos remete tanto à melhoria de processos quanto aos processos de melhoria.
Releia atentamente a frase anterior. O que parece um mero jogo de palavras, na verdade expõe dois conceitos que, do ponto de vista da filosofia lean, são inseparáveis.
Melhoria nos processos é a parte mais evidente de uma transformação lean. Mas poucos percebem que um dos maiores objetivos de praticamente todas as mudanças lean nos processos é expor problemas, para que sejam resolvidos rapidamente pelo time envolvido, no momento e local onde ocorrem.
Vamos pegar o exemplo do início típico da jornada lean em muitas empresas: através do mapeamento do fluxo de valor e de outras ferramentas, o leiaute é mudado, criando células com trabalho padronizado, sistema puxado etc. Somente isso não é suficiente, pois variações ocorrerão. Isso vai exigir outros elementos do sistema lean, como a exposição imediata de desvios, através de gestão visual e andon, e a rápida solução, através da cadeia de ajuda e do método estruturado de solução de problemas.
No sistema lean, o processo de realizar o trabalho é integrado ao processo de melhorá-lo. A não compreensão dessa conexão pode levar ao uso mecânico de ferramentas lean, sem o resultado esperado.
Como desenvolver pessoas e capacidades?
As mudanças no processo trazidas pelo lean exigem novas capacidades das pessoas.
Essas capacidades envolvem tanto habilidades hard, ou técnicas, que possibilitem a realização do trabalho padronizado com segurança, no ritmo e qualidade especificados, quanto habilidades soft, ou comportamentais, como atitudes proativas, trabalho em equipe e solução de problemas.
No sistema lean, não queremos apenas solucionar problemas. Queremos desenvolver solucionadores de problemas. Mais uma troca sutil de palavras que faz toda a diferença. Aprender a solucionar problemas de maneira estruturada é mais difícil do que parece. Frente aos desvios, todos têm a tendência de pular para “soluções”, sem entender o real problema e suas causas, passos fundamentais do PDCA, muito falado, mas pouco praticado.
A forma lean de desenvolver pessoas é prioritariamente on job, através de um processo em cascata, de líderes desenvolvendo sua equipe através do coach para solução de problemas diários. Mas, para isso, os líderes também precisam ser desenvolvidos, o que nos leva à próxima questão do LTF.
Quais são o estilo de liderança e o sistema de gestão que queremos?
O estilo de liderança predominante em um sistema de gestão tradicional (não lean) ainda é o “faça do meu jeito”. Os líderes, em geral, se veem em meio a processos instáveis, apagando incêndios sucessivos, e acham que seu papel é o de herói, devendo dar respostas para tudo.
O estilo de liderança necessário para a sustentação do sistema lean não é o que tenta dar as respostas, mas sim o que sabe fazer as perguntas certas, desenvolvendo seu pessoal como solucionadores de problemas, o que pode ser feito de maneira estruturada utilizando o
processo A3.
Isso exige uma mudança enorme dos líderes, tanto na forma como interagem com suas equipes quanto na maneira como desdobram os objetivos e atividades, através dos mecanismos e processos de gestão da empresa.
Vemos, em algumas organizações, um comportamento quase esquizofrênico no que se refere à gestão e estilo de liderança. No chão de fábrica, as práticas começam a mudar com quadros de acompanhamento de algumas metas estabelecidas nas células de trabalho. Mas os processos de gestão, muitas vezes, ficam intactos, como se se tratasse de outra empresa. Os gestores continuam longe do gemba, em intermináveis reuniões baseadas em Power Point, analisando mensalmente indicadores que, muitas vezes, não têm ligação direta com o que está sendo observado nos locais de trabalho.
O sistema lean tem formas de conectar os esforços de melhoria do topo à base da pirâmide da empresa. Essas práticas vão, por exemplo, desde o desdobramento da estratégia, através do
hoshin kanri, até o
gerenciamento diário.
Qual é o nosso pensamento básico?
As práticas das pessoas em uma empresa são condicionadas por um conjunto de valores e pressupostos, que podemos chamar de pensamento básico, ou modelo mental. As práticas, ou formas como as pessoas trabalham e interagem, são mais visíveis, enquanto que os pressupostos nem sempre são explicitados.
É comum observar uma desconexão entre esses elementos. Por exemplo, uma empresa que declare como um valor seu: “os colaboradores são nosso maior diferencial”, mas que tenha um pressuposto de que as pessoas podem ser facilmente trocadas, jamais vai ter práticas condizentes com o valor declarado.
O sistema lean traz muitas mudanças práticas. Se os antigos pressupostos não forem trazidos à tona, discutidos e modificados, essas novas práticas jamais funcionarão pra valer.
Vamos pegar como exemplo o andon (dispositivo que sinaliza problemas e que, em alguns casos, pode gerar a interrupção do processo). O pressuposto lean é o de que, para sermos produtivos, devemos parar ao encontrar um problema, para identificar a causa e resolvê-la, de forma que o problema nunca mais ocorra. Compare isso com o pressuposto que, muitas vezes, está subjacente na cabeça de alguns gestores: não temos tempo para parar, continue que resolvemos o problema depois. Muitas vezes, esse tipo de pressuposto não é declarado, mas pode ser a causa raiz das resistências e indisciplinas na aplicação das técnicas e conceitos lean.
Mas como podemos mudar os pressupostos? Uma forma é explicitar e discutir os conflitos que possam haver entre as velhas e as novas premissas, necessárias para fazer a jornada lean avançar. Outro elemento fundamental nesse processo é a atitude das lideranças, dando exemplo ao aplicar as novas práticas de maneira disciplinada, mostrando o propósito e desenvolvendo as pessoas.
A filosofia lean acredita na interação entre práticas e pressupostos. Ao utilizar uma nova prática, mesmo que em escala reduzida, a validade de alguns novos pressupostos fica evidenciada, quebrando algumas resistências. Isso possibilita o aprofundamento das práticas lean, gerando um círculo virtuoso.
Muitas vezes nos referimos ao sistema lean como um sistema sócio-técnico. Isso significa que não bastam mudanças meramente técnicas. A jornada lean de sucesso depende da combinação de: propósito, processos, pessoas, gestão, liderança e pensamento básico. Sem um enfoque que trate, de maneira integrada, todos esses elementos, a mudança lean fica fadada à superficialidade.
As questões do Lean Transformation Framework (LTF) são um convite para que todos reflitam profundamente sobre sua transformação lean. Esperamos que essa reflexão ajude as empresas a evitarem os altos e baixos da jornada, incorporando a filosofia lean de maneira profunda e permanente, de forma a obter resultados sustentados e cada vez melhores.
Flávio A. Picchi
Vice-Presidente
Lean Institute Brasil
PS1: O LTF será o tema principal do
Lean Summit 2016 , que já tem data e local: São Paulo, 7 e 8 de junho. Inclua o evento em seu planejamento 2016 e aproveite o desconto especial para inscrições até 18/12/15. Não perca a oportunidade de debater os diversos aspectos da transformação lean com convidados internacionais e de conhecer casos de sucesso das principais empresas que aplicam a filosofia. Participe deste evento, que é o maior encontro da comunidade lean no Brasil.
PS2: Assista à animação, elaborada pelo LIB e pelo LEI, que explica de maneira didática os cinco elementos do LTF.
PS3: No artigo "
Hospital modelo: aplicando lean na saúde em tempos de economia difícil"”, a autora, Cristina Fontcuberta Adalid, faz uma reflexão sobre o caso, trazendo exemplos de como foram abordados alguns dos elementos do LTF.
PS4: Convide seus colegas de tecnologia da informação para conhecerem os mais recentes conceitos e aplicações nessa área no
Lean IT Summit, dia 28 de outubro próximo em São Paulo. Teremos os convidados internacionais: Mary e Tom Poppendieck e Pat Reed, bem como casos das empresas: Dell, Spotify, Embraer, Magazine Luiza, CI&T, Capgemini.
PS5: Dia 3 de dezembro, em São Paulo, o LIB promove o
Lean Summit Saúde, que compartilhará experiências em diferentes estágios de evolução, no Brasil e nos EUA.