As aplicações do pensamento lean são cada vez mais abrangentes, chegando a praticamente
todas as áreas e funções das organizações. Mas, em muitas empresas, vemos os setores
de TI ainda à margem da jornada lean. Será que isso faz sentido?
A Tecnologia da Informação (TI) é, sem dúvida, um dos maiores propulsores de mudança
na forma como as empresas agregam valor a seus clientes e aumentam sua produtividade.
Mas é também uma das maiores fontes de desperdícios.
Do ponto de vista da agregação de valor, todos reconhecem que a TI, cada vez mais,
muda a vida das pessoas, facilita as interações entre empresas e clientes e agiliza
processos internos.
Mas existe também o “lado negro”. Um estudo clássico, realizado anualmente pelo
Standish Group, mostra que somente 39% dos projetos de TI são entregues dentro do
previsto, 43% apresentam problemas (custos e/ou prazos excedidos) e 18% nem chegam
a ser entregues.
Os estouros médios são de 59% em custos e de 74% em prazos. Das funcionalidades
entregues, 65% não são usadas, 15% são parcialmente usadas e somente 20% são usadas
apropriadamente.
As consequências disso podem ser vistas na maioria das empresas: de um lado, áreas
demandantes, reclamando da “fila” aguardando por soluções da TI; do outro, os setores
de TI, sobrecarregados e pressionados quanto aos custos.
TI é também uma área que consome uma parcela significativa de investimentos e despesas.
De acordo com o Gartner Group, em 2014, as empresas gastaram em média 2,5% de suas
receitas em TI, sendo que companhias de alguns setores, como saúde e finanças, atingiram
mais de 5%.
Sendo uma área de tamanha importância, tendo em vista valor, desperdícios e recursos
envolvidos, a Tecnologia da Informação não pode estar fora do foco do lean. Diversos
enfoques surgiram nos meios de desenvolvimento de software com esse objetivo, sendo,
muitas vezes, identificados pelo termo em inglês Lean IT.
Um breve histórico
O processo de desenvolvimento de software tradicional baseia-se em rígidas especificações
no início do processo, desenvolvimento em cascata e entregas em grandes lotes.
Esse modelo começou a sofrer críticas, pelos grandes desperdícios que gera, citados
anteriormente.
Em 1999, o conceito de XP-Extreming Programing trouxe uma proposta de mudanças
radicais no processo de desenvolvimento de software, com foco na organização do
time para gerar software de qualidade, com produtividade em ciclos curtos, aceitando
mudanças como algo natural.
Em 2001, um grupo de profissionais da área de software lançou o Manifesto Ágil. Seus princípios abordam diversos aspectos
que têm grande proximidade aos conceitos lean, como a prioridade em atendimento
ao cliente, entregas frequentes, flexibilidade e motivação da equipe.
Na busca pela aplicação desses princípios, surgiram diversas “práticas ágeis”. Algumas
alteram a gestão do processo de desenvolvimento tradicional, sendo uma das mais
difundidas o Scrum,
na qual podemos reconhecer diversos conceitos lean, como: interações frequentes
com o cliente, entregas em pequenos lotes, gestão visual, trabalho em
equipe e reflexão a cada ciclo de entrega.
Outra prática que também muda o processo tradicional de desenvolvimento é o Kanban, que busca o fluxo contínuo através de forte gestão
visual.
Diversos conceitos e ferramentas de engenharia de software se desenvolveram, apoiando
a criação de fluxo e qualidade na fonte. São exemplos disso: o TDD-Test Driven Development, as metodologias que integram e
automatizam o ciclo desenvolvimento-teste-integração-entrega, e a busca da integração
de desenvolvimento e operação (DevOps).
Na discussão sobre ferramentas que poderiam compor o conceito de Lean IT, muitas
vezes, enfoques provenientes de outras tradições são lembrados. Por exemplo, o ITIL e o COBIT, cujos pontos mais fortes estão na sistematização
de melhores práticas. Embora sejam enfoques que não vêm da tradição lean (pode-se
reconhecer semelhanças com o enfoque PMBOK, por exemplo), contribuem para a estabilização e padronização
de processos, aspectos fundamentais para um ambiente lean.
Já o enfoque CMMI,
recebe de muitos na comunidade de TI as mesmas críticas que os sistemas de certificação
(por exemplo, ISO 9001) geram em outros ambientes: o de exigirem muita formalização
sem resultados na mesma proporção.
Mary Poppendieck, uma das pioneiras em buscar um enfoque
mais amplo na área de Lean IT, aponta como elementos fundamentais nesse processo: faça a coisa certa
(entenda o real valor para o cliente), faça rápido (reduza o lead time),
faça da maneira certa (garanta qualidade e velocidade) e aprenda por meio de feedback.
Eric Ries expande o conceito de feedback em seu livro “Lean Startup” com ciclos rápidos de aprendizado, testando
hipóteses com o cliente final, ajustando o rumo ou persistindo, conforme o resultado.
Mary aponta também que o desenvolvimento de software é, na verdade, um subsistema
de desenvolvimento de produtos (DP) e aponta os conceitos de Lean DP como totalmente aplicáveis.
É bom lembrar que as metodologias ágeis também despertam grande interesse dos envolvidos
na aplicação lean DP, confirmando que essas áreas têm muito a aprender uma com a
outra.
Muitos desses conceitos tiveram maior atenção do lado dos fornecedores (desenvolvedores)
e menos da demanda (clientes internos e externos). Seria como se o sistema estivesse
sendo mais empurrado que puxado.
Bell e Orzen, no livro “TI Lean”, apontam a necessidade da abordagem nos dois sentidos:
para dentro, excelência operacional em TI, e para fora, integração com a melhoria
dos processos de negócio. Esse livro foi pioneiro em explorar esse segundo aspecto
da integração com o negócio.
Como tudo isso está chegando à TI corporativa
Enquanto a adoção desses conceitos tem sido rápida em empresas que entregam software
como serviço – como Google, Spotify, ou startups e empresas que desenvolvem aplicativos
móveis –, podemos dizer que, nas estruturas de TI corporativas, a aplicação disso
tudo é ainda incipiente.
A transformação lean inicia, na maioria das empresas, nas operações (produção e
logística); logo após, geralmente, expandem-se para os processos administrativos
(lean office); com a maturidade da implantação, chegam até os sistemas de
gestão e liderança.
Mas mesmo em companhias com uma jornada lean bastante avançada, é muito raro vermos
as estruturas de TI envolvidas. Em alguns casos, não só se mantêm à parte, como
acabam se tornando barreiras às mudanças.
Vemos, com frequência, esforços de simplificação, decorrentes do lean office,
esperarem meses para obter uma mudança de sistema, entrando na interminável fila
do backlog de TI.
Já presenciei em uma empresa dificuldades para implantar o kanban na produção,
pois o sistema exigia inúmeras baixas de movimentações de estoque entre processos
que haviam sido eliminados pela criação de fluxo.
Com os desperdícios e ruídos que existem ao longo da cadeia, a área de TI está cada
vez mais sobrecarregada e se distancia cada vez mais das áreas de negócio, criando
um círculo vicioso.
Como tudo no lean, entender que problema você quer resolver é o primeiro passo.
Desenvolver um software com tais funcionalidades pode ser uma contramedida. Mas
sem que todos os agentes da cadeia tenham antes entendido que problema precisa ser
resolvido, isso pode levar a grandes desperdícios.
Participamos de um projeto em uma empresa de comércio varejista de produtos especializados
que é um exemplo de como a área de TI buscou entender juntamente com as áreas de
negócio qual era o problema a ser resolvido antes de perguntar que software precisaria
ser desenvolvido.
Preparando-se para a implantação de um ERP, a companhia decidiu antes racionalizar
alguns processos que apresentavam problemas. Os produtos certos não chegavam às
lojas na hora certa e vendas eram perdidas, apesar de enormes estoques. Cobranças
aos clientes apresentavam erros.
Trabalhando conjuntamente: TI, lojas, finanças, compras e fornecedor, eles conseguiram
atingir as metas de redução de estoque e melhoria de atendimento, usando ferramentas
como mapeamento de fluxo de valor, kanban etc.
A grande maioria dos problemas foram resolvidos com mudanças no fluxo, sem necessitar
alterar uma linha de código. Transformações simples foram rapidamente incorporadas
pela equipe de desenvolvimento de software, que entendeu exatamente o que seria
necessário.
Se, nesse caso anterior, fosse utilizado o “sistema tradicional”, especificações
detalhadas seriam feitas, sistemas pesados e caros seriam desenvolvidos, demorando
muito tempo. A fila de software a ser desenvolvido teria recebido uma carga bem
maior, e, possivelmente, o problema não seria totalmente resolvido.
A ideia de Lean IT ainda está em construção. Os conceitos lean específicos, aplicados
às operações, desenvolvimento de produtos, office e desenvolvimento de software
são, na verdade, apenas casos particulares da aplicação da filosofia lean.
As diferentes “tribos” envolvidas têm muito a ganhar se investirem mais no compartilhamento
de conceitos e aprendizados, bem como na integração de esforços ao longo de toda
a cadeia de valor.
Tecnologia da Informação é fator estratégico para o futuro de todas as empresas,
exigindo um novo patamar de agregação de valor e eliminação de desperdícios. A comunidade
lean tem a oportunidade de dar uma enorme contribuição para esse salto, reunindo
conhecimentos e experiências que vêm sendo acumulados paralelamente em diversas
áreas das empresas.
Flávio A. Picchi
Vice-Presidente
Lean Institute Brasil
PS1: Estamos lançando, pela primeira vez no Brasil, o Lean IT Summit, que será realizado em São Paulo, no dia
28 de outubro de 2015. Um de seus objetivos é reunir envolvidos em toda a cadeia
de valor, da necessidade do negócio aos desenvolvedores. Será uma ótima oportunidade
para sua empresa envolver a área de TI na jornada lean, se isso ainda não ocorreu.
Agende-se e convide seus colegas. Teremos nesse evento os convidados Internacionais:
Mary e Tom Poppendieck e Pat Reed, que também darão cursos pré e pós evento, dias 27 e
29 de outubro. Teremos também casos de aplicação dos conceitos de Lean IT em empresas,
tais como Spotify, CI&T e Embraer.
PS2: Leia a entrevista em que Mary e Tom Poppendieck
refletem sobre o que faz um negócio ter sucesso e qual é o futuro do desenvolvimento
lean de software.
PS3: No artigo “Transformando a TI de uma agencia governamental em ágil”
Gavin Martin descreve uma implementação bem-sucedida de metodologias ágeis e seus
resultados, além de apresentar as limitações dos enfoques tradicionais aplicados
ao desenvolvimento de software.