SAÚDE

O pensamento lean no combate à dengue

Flávio Battaglia e Tamiris Masetto Manzano
Recentemente, o lean passou a ganhar espaço na área da saúde; ele aparece como resposta à crescente demanda em hospitais públicos e particulares e aos níveis de satisfação de pacientes, que, consequentemente, estavam cada vez mais baixos. O Hospital São Francisco revelou, em entrevista exclusiva no último Lean Summit Saúde, como foi possível atender, através do lean, um grande número de pacientes com dengue de maneira rápida e eficiente e como tem sido o tratamento da epidemia neste ano.

Nos últimos cinco anos, três epidemias de dengue causaram alarme na população ribeirão-pretana – em 2011, em 2013 e recentemente em 2016 –, desafiando os hospitais a lidarem com a situação da melhor forma possível. Nesses contextos, não diferentemente da manufatura, o foco deve estar sempre no cliente (que, nesse caso, é o paciente).

Hospital São Francisco

O Hospital São Francisco está localizado no município de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo; atualmente, ele possui cento e sessenta e cinco leitos; é um hospital eminentemente cirúrgico, realizando em torno de mil e setecentos procedimentos e atendendo por volta de onze mil pacientes por mês no pronto atendimento e na emergência.

mosquito Aedes Aegypti

A dengue é uma arbovirose (doença causada por um vírus que é transmitido por um artrópode, como o mosquito Aedes Aegypti) que atinge entre cinquenta e cem milhões de pessoas por ano. Os casos de dengue vêm aumentando de forma alarmante desde a década de 50, quando apenas nove países registravam casos; hoje mais de cem países registram casos de dengue, incluindo o Brasil, que já registrou mais de sete milhões de casos desde 2002.

A primeira epidemia

Em 2011, pouco tempo após o HSF ter construído uma nova área de pronto atendimento anexa à emergência, o hospital enfrentou o primeiro surto da doença; a projeção para aquele ano era atender doze mil pacientes por mês; entretanto, devido aos casos de dengue, que chegaram a representar 32% dos pacientes do hospital, a demanda aproximou-se de vinte e oito mil pacientes por mês (em abril de 2011).

Naquela época, o hospital ainda não utilizava o pensamento lean (que passaria a ser utilizado por eles no ano seguinte, em 2012). A opção, então, foi construir a “Casa da Dengue”, um edifício localizado bem à frente do Pronto Atendimento dedicado aos casos da doença; com isso, apesar do alto investimento e das dificuldades encontradas, como a necessidade de treinamento de seus profissionais, o hospital conseguiu superar a primeira epidemia sem registrar óbitos, algo muito celebrado por todos.

Quantidade de pacientes com CID dengue em relação ao total de pacientes 2011

A segunda epidemia

Em 2012, com os casos de dengue caindo de forma rápida, e a epidemia aparentemente cessando, foi decidido que a “Casa da Dengue” daria lugar a operações mais necessárias para o hospital naquele momento; infelizmente, no ano seguinte, a cidade enfrentaria sua segunda epidemia de dengue em três anos; sem a “Casa da Dengue” e com profissionais sem capacitação, uma vez que o quadro de médicos já havia sido completamente alterado em comparação com o de dois anos atrás, as complicações pareciam aumentar. Dessa vez, entretanto, o HSF tinha uma “carta na manga”, o pensamento lean.

O segundo surto da doença chegou a elevar o número de atendimentos do HSF para mais de vinte e três mil pacientes no mês de abril de 2013, sendo quase nove mil desses pacientes atendidos contra a doença (representando 37,8% do total de pacientes). Dessa vez, seria necessário mais esforço – na verdade, não mais esforço, mas um esforço mais inteligente, o esforço lean.

Quantidade de pacientes com CID dengue em relação ao total de pacientes 2013

A terceira epidemia

Agora, em 2016, estamos passando pela maior epidemia de dengue da história do Brasil. Ainda pior é que o mesmo mosquito pode transmitir outras doenças em circulação, como zika e chikungunya. Não se evidenciou a presença de chikungunya autóctone em Ribeirão Preto, mas a zika espalhou-se pela cidade ainda em 2015. Como não havia sorologia disponível para o diagnóstico de zika, e o quadro clínico inicial de dengue e zika eram parecidos em termos de fluxo de atendimento, as duas infecções foram tratadas da mesma forma. Tratou-se de mais um desafio para o Hospital São Francisco, mas um desafio para o qual eles já estavam se preparando.

Historicamente, a epidemia de dengue se inicia em janeiro, com pico em abril; a equipe do PA/emergência que acompanhava o número de atendimentos de pacientes com suspeita de dengue percebeu um aumento no número de casos suspeitos a partir de novembro de 2015. Essa percepção só foi possível porque, desde o ano de 2014, esses pacientes eram acompanhados diariamente no round de reunião diária da equipe do pronto atendimento, conhecido como “gemba meeting” no Hospital São Francisco.

Devido a esse aumento, foi estruturado, em outubro de 2016, um grupo multidisciplinar a fim de traçar um plano de ação para se preparar para o que poderia ser uma epidemia. Nesse grupo, havia pessoas de diferentes áreas: Pronto Atendimento/Emergência, SCIH (Serviço de Controle de Infecção Hospitalar), Unidade de Terapia Intensiva, Laboratório, Manutenção, Farmácia, Qualidade e Melhoria Contínua, além de gerências administrativas e técnicas. Em fevereiro de 2016, o número de pessoas no PA/Emergência com dengue aumentou quase oito vezes em relação a dezembro de 2015. Além disso, no mês de fevereiro, o número de pessoas com dengue representava 53% dos atendimentos do PA/Emergência do HSF.

Quando o pico do surto aconteceu no hospital no período final de fevereiro, o hospital já estava bem preparado para lidar com a situação, tratando bem seus clientes e recebendo inclusive elogios formais através de canais de atendimento, como o SAC.

Quantidade de pacientes com CID dengue em relação ao total de pacientes 2016

Como o pensamento lean foi fundamental no combate à doença

Os surtos de dengue ocasionam um aumento significativo na demanda do hospital, e o atendimento aos pacientes torna-se caótico. Como na maioria das doenças, um diagnóstico rápido é a mais eficaz contramedida que auxilia no combate da dengue (a melhor profilaxia é a prevenção; a segunda, um diagnóstico rápido). Por isso, o hospital adotou um fluxo desde a chegada do paciente ao PA até o diagnóstico da doença, em que o paciente passa pela triagem tradicional, mas é direcionado para um fluxo dedicado aos pacientes com suspeita ou retorno de dengue.

Algumas das medidas tomadas pelo hospital foram:

• Identificação visual dos pacientes com dengue – os pacientes em retorno ou suspeita de dengue recebiam uma pulseira de cor laranja para destacá-los; além disso, essa mesma cor identificava o paciente no sistema.

• Autonomia para enfermeiros na triagem – não é comum o paciente coletar exames antes de passar por atendimento médico, porém, com suspeita na triagem, a enfermagem obteve a autonomia de encaminhar o paciente para coleta de exames de hemograma.

• Padronização do atendimento de dengue para médicos – o fluxo de atendimento técnico da doença e de diagnóstico foi revisado e atualizado para compreender todas as novas necessidades.

• Fluxo dedicado para pacientes com dengue – os pacientes com dengue seguiam um caminho específico no PA após serem identificados com a pulseira laranja, passavam pela coleta de exames, eram atendidos por médicos específicos e encaminhados para medicação ou alta com agendamento de retorno.

• Carteira de dengue para acompanhamento – para facilitar o acesso a informações e até melhorar a visualização de dados clínicos do paciente, foi utilizada uma “carteirinha” de dengue para cada paciente (dados de exames laboratoriais de cada visita a unidade). Nessa carteirinha, também constavam informações em linguagem simples sobre tratamento e sinais de gravidade que deveriam trazer o paciente de volta ao hospital antes do retorno agendado.

• Hidratação de todos os pacientes – garrafas de água foram entregues para os pacientes com dengue ou com suspeita da doença para realizar a hidratação e ajudar a acalmar os ânimos no grande fluxo de pessoas.

• Gestão visual de informes e sinais de alarmes – cartazes e banners nas paredes identificavam como prevenir e se cuidar contra a dengue. Explicações técnicas descritas em uma linguagem simples foram apresentadas em banners para que os clientes pudessem se informar de como realizar o próprio cuidado em sua residência, assim como também identificar sinais de alarme que indicavam que a doença poderia estar piorando e que deveria ir imediatamente ao hospital.

• Fluxo contínuo/célula de análise de exames – os exames laboratoriais são tradicionalmente realizados em uma área diferente do hospital, porém, durante o surto, foi montada, no PA, uma célula para coleta, análise e liberação de laudo técnico. Essa importante mudança contribuiu para reduzir o tempo de liberação do exame, que, na célula, percorria uma distância menor para ser processado.

• Balanceamento da demanda/agendamento de retorno – a dengue pode durar entre cinco a sete dias, e o paciente deve retornar ao hospital a cada um ou dois dias, de acordo com seu perfil, para evitar grandes picos de chegada de pacientes; sempre após a alta médica, o paciente passava pelo agendamento de retorno, exclusivo para dengue, para marcar em qual horário ele deveria comparecer à unidade no próximo retorno.

• Redesenho de leiaute – a unidade do PA atende normalmente em alta ocupação, mesmo em períodos que não são de epidemia; por isso, houve a necessidade de readequar as áreas para que fosse possível fazer todas as implantações necessárias, como célula, fluxo exclusivo, médicos dedicados e área de hidratação.

• Treinamento da equipe médica e de enfermagem – nada funcionaria sem a capacitação de toda a equipe que realiza o cuidado ou que está envolvida no fluxo de cuidado do paciente; por isso, foram realizados treinamentos individuais e coletivos. Um grande alerta para perceber que a equipe não estava capacitada no fluxo da dengue foi o acompanhamento da coleta do exame específico que diagnostica dengue (NS1) em situações erradas ou fora do protocolo. Só a prescrição correta de exames gerou uma estimativa de economia de mais de R$65.000,00 para o hospital, o que pagou com sobra o investimento na distribuição de águas, padrões visuais e outros informes.

Resultados alcançados até o momento

O Hospital São Francisco conseguiu, nesta epidemia da doença, um número maior de pacientes que a maior epidemia que a unidade já havia vivido (2011) sem grandes investimentos, mas apenas gerenciando seus recursos de forma mais lean. Os resultados financeiros da unidade de PA/Emergência foram melhores que os períodos sem epidemia, o ticket de custo por atendimento ficou cerca de 40% abaixo do padrão, e, como indicador de qualidade, o número de SAC (reclamações) se manteve no padrão; além disso, foi estabelecido o indicador de elogios para o setor, que não existia até o momento.

Conforme ilustram os gráficos abaixo, durante os meses de janeiro, fevereiro e março de 2016, o custo padrão da emergência e do pronto atendimento caiu drasticamente, em parte essencial graças ao pensamento lean.

Variação do Custo Emergência

Variação do Custo Pronto Atendimento

Prevenindo a doença

A equipe do HSF preparou um material de divulgação com o intuito de educar seus pacientes e reduzir a crescente demanda. Tecnologias, como vídeos e aplicativos (como o WhatsApp) foram utilizados. Atualmente, há uma grande mobilização por parte da mídia em educar a população quanto à prevenção da doença, mas o hospital precisa acompanhar e servir como exemplo para assegurar que essas regras de prevenção sejam seguidas.

O lean auxiliou o hospital a enxergar o valor pela perspectiva do cliente e a pensar como eles. Com isso e com o auxílio da gestão visual, foi possível a criação de materiais acessíveis a toda a população, diminuindo os casos de infecção e reduzindo a demanda para o hospital.

O que o HSF espera nesta epidemia

Com a base do pensamento lean implementada durante o segundo surto da doença, o hospital tem flexibilidade para passar por mais esse momento crítico com certa tranquilidade. Mas o HSF sabe mais do que ninguém que não podemos parar. Lean significa melhorar continuamente e buscar sempre as melhores práticas para reduzir os desperdícios e melhorar os processos.

Por isso, a equipe do hospital está engajada em ultrapassar mais essa barreira. E ela sabe que não está sozinha nessa batalha; toda a população está unida no combate de uma das piores epidemias já vivenciadas, e o pensamento lean fornece todo o suporte necessário para atingirmos os objetivos. As ferramentas, técnicas e, principalmente, a mentalidade lean estão a nossa disposição. Cabe a nós decidirmos utilizá-las. O HSF deu o primeiro passo, e esperamos que vários outros hospitais, de setores públicos e privados, sigam essa iniciativa.

Agradecemos à equipe do Hospital São Francisco, em especial à Dra. Silvia Nunes Szente Fonseca, Elaine C. A. G. Bizerra, Maysa de Souza, Larissa H. J. Sigaki, Arthur Teixeira e Roberto Chimionato pela revisão deste artigo e pela contribuição com os dados do Hospital aqui fornecidos.

Publicado em 11/05/2016

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Tamiris Masetto Manzano
Editora e tradutora no Lean Institute Brasil.

Planet Lean

The Lean Global Network Journal

Planet Lean - The Lean Global Network Journal